segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Peaceful Christmas?


As epifanias têm ainda espaço nos nossos violentos e cruéis dias?

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos


Monumento às vítimas dos massacres durante a guerra civil em El Salvador

Parque de San Salvador, 2008



I.
Frente a frente, eu por perto, duas histórias.
Omar, filho de militar e dona de casa, moradores da zona rural, seis irmãos, família simples, tios e tias campesinos. Roberto, avós maternos donos de uma grande fazenda no oriente do país, família de classe média. Uma guerra civil a pleno vapor. Exército e esquadrões da morte formados por grupos paramilitares decapitando “comunistas” pelo interior do país em nome da ordem e do poder. Sangue de campesinos, estudantes, sindicalistas, padres jesuítas e outros da Teologia da Libertação, advogados pró-direitos humanos, professores, mães, pais, avós e crianças misturando-se às sementes de um porvir incerto. “Los suscritos delegados representantes de Unión Guerrera Blanca, Escuadrón de La Muerte, Organización para La Liberación del Comunismo, Frente Anticomunista para La Liberación de Centroamérica, La Mano Blanca, La Legión del Caribe y Brigada Anticomunista Salvadoreña decretan: (…) exterminar físicamente a todos los asesinos comunes, ladrones, asaltantes, violadores, rateros, homosexuales, prostitutas, drogadictos, falsos curas, militares traidores, abogados sinvergüenzas, profesores venenosos, funcionarios de gobierno corruptos, prestamistas sin escrúpulos y toda esa podredumbre de salvadoreños mal nacidos.” E assim foi. A guerrilha, formada por um grupo de rebeldes de distintas ordens e lugares, informava o povo sobre as condições de injustiça nas quais viviam desde a independência (e sob o comando de uma oligarquia insaciável de poder) e também se defendia atacando. Houve igualmente, porém em escala infinitamente menor, sangue civil de prefeitos e fazendeiros partidários da direita corrupta e cruel.
Omar, aos seis anos, viu seu pai ser torturado, dedos quebrados, olhos furados, morto a balas e arrastado em um carro, acusado de traidor. A mãe, testemunha, também foi assassinada. Perdeu quatro tias e outros tantos familiares campesinos, todos violentamente mortos. Os avós de Roberto, por sua vez, foram assassinados por um grupo de guerrilha chamado ERP. Omar cresceu querendo vingança; a imagem não lhe sai da cabeça. Roberto queria ser militar, defender a ordem, a família, a terra. A vida ensinou a Omar que a justiça não é aliada da violência. A vida, por sorte, lesionou Roberto e lhe tirou da carreira militar, levou-o à UCA, universidade onde seis padres jesuítas haviam sido brutalmente mortos por defenderem a liberdade de expressão. Roberto descobriu que tudo o que lhe haviam contado em casa eram mentiras e que os abusos militares tinham sido mil vezes mais bárbaros que os da guerrilha. E que a guerrilha lutava por uma dignidade que o povo não conhecia. Os acordos de paz já haviam sido firmados quando esses dois homens se deram conta de sua condição. A dor não passa, porque as marcas continuam vivas. Nunca houve punição a essa gente – e muitos dos bárbaros seguem, senão no poder ou no governo, em postos estratégicos do país. Falo de El Salvador.

II.
Poderia falar também da Palestina, que vive sob o julgo da ocupação israelense. Muros ao redor de suas cidades, check-points autoritários em que cada palestino, jovem ou idoso, calmo ou nervoso, precisa provar que é gente a soldados adolescentes orgulhosos das armas pesadas que portam. Palestina não é um país, não é um Estado, quando muito lhe é permitido ser uma nação. Território ocupado, vive um conflito interno: mais que Hamas ou Fatah ou outra facção política, uma certa desilusão quanto às alternativas suaves, pacíficas, demoradas e costuradas preguiçosamente pelas organizações internacionais e os países dominantes. Desilusão que não apaga a esperança, porém. Uma avó guarda a chave da casa que foi obrigada a deixar. Um jovem de cílios longos sonha em chamar aquela terra de país. Uma jovem mãe de três filhos espera que seu menino não seja um homem-bomba. O cansaço, contudo, influencia os ânimos. Imaginem que Israel não pára de construir assentamentos em pleno território palestino. A legislação internacional permite isso? Respondam-me vocês. E, para viver aí, não pensem que vão somente israelenses. Vão judeus de todas as nacionalidades, inclusive indianos do norte, aqueles que têm olhos amendoados e mais parecem nepaleses ou mongóis, acostumados a climas cálidos e paisagens de outros tons.
— Conheço Roma, conheço Paris, conheço várias cidades no mundo. Mas se você me perguntar como é Jerusalém hoje, não sei responder. Há quinze anos não vou lá. Não tenho permissão – conta-me Khaled, que dirige Ibdaa, centro educativo e cultural localizado numa das entradas do Campo de Refugiados Dheisheh, bem ao lado das instalações da ONU que oferecem atendimento médico à comunidade.
Como viver com dignidade se todas as fontes de água e a eletricidade são controladas por Israel a seu bel-prazer (e corta o fornecimento quando quer)? Se esse povo é taxado de “terrorista”? Se sofrem preconceito aonde quer que vão?

III.
Não mencionei ainda a situação das mulheres na Índia, muitas delas obrigadas a uma condição precária ou passiva diante de uma cultura deveras machista. Quantas meninas vendidas a países árabes como empregadas domésticas ou sexuais, quem saberá? Quantas mulheres vistas com desdém e comiseração pelo simples fato de não serem casadas? Mas existem mulheres fortíssimas por lá, cuja voz aos pouquinhos se faz ouvir. Porém, seguem a pobreza generalizada, as péssimas condições sanitárias, epidemias de doenças erradicadas há muito tempo em muitas nações. E a Índia faz parte do BRIC e do G-20, economia jovem e vigorosa, quantos investimentos! Swagata sempre dizendo: “não nos olhem com pena!” Jovem de voz forte, nascida em Calcutá, cheia de sonhos e vontades. Swagata do país de Gandhi, que também mobilizou o povo. A voz de Swagata faz eco à de Subba Rao, pacifista de 75 anos com energia de sobra para falar às crianças: deixem que venham a mim. Eles me enchem de ternura e esperança.

E passeamos pelo norte do Chipre, esquecido pelo mundo que só tem olhos e óculos Pierre Cardin (ou qualquer marca dessas) para o Chipre “que presta”, o Chipre do euro, o Chipre rico e subordinado, seguidor das cartilhas capitalistas e mercadológicas, de jovens de salto alto e rabo de cavalo, shorts e blusas muito fashion, o Chipre grego. E no Chipre norte, a terra pulverizada por sangue de ambos os lados, famílias deslocadas, corações cheios de cicatrizes, lembranças de um tempo sufocante, pobreza, quem sabe uma lembrança doce de um amor de verão. E a Lefkoşa dividida e estranha: imigrantes pobres turcos vivem no centro desértico e destruído, enquanto a classe média cipriota se acomoda nos bairros mais afastados imaginando-se na Turquia. Ou na Europa. Ou em ambas: na União Européia.

Massacres esquecidos e humilhações de várias ordens também fazem parte do cotidiano e da história de sérvios, bósnios, croatas, albaneses-kosovares. Cada qual com sua versão do fato, com sua lembrança dolorida. Elejo Mitroviča como a cidade-símbolo dos dissabores todos das guerras, dos mandos e desmandos dos homens de gravata, de uniforme, de capacete azul e também de cifrões, esses recheados de cifrões, olhos vidrados em minérios, petróleo, fontes de água, corpos alheios. Elejo Mladen e Valdete, ele sérvio, ela albanesa, como exemplos de dignidade em meio ao caos de egoísmos, desentendimentos, surdez e violência. Ele cansadíssimo. Ela ainda cheia de energia. Ele já desistiu de amar, muito difícil. Ela ensaia tardiamente seus passos para o exercício da entrega. As cicatrizes doem, embora eles disfarcem. Ele bebe, ela se agita.

IV.

Seguiríamos falando, se houvesse tempo. Mas a urgência, nesse caso, é fundamental. Há a África, a Ásia, a América Latina, também Europa e América do Norte, Oceania, os oceanos. De um certo país imenso e gigantesco do hemisfério sul, vêm as seguintes perguntas:
1. A quantas anda o julgamento do caso Eldorado dos Carajás?
2. E o caso Dorothy Stang?
3. E os culpados do massacre do Carandiru?
4. Candelária, Vigário Geral?
5. E o caso da Raposa Serra do Sol? Do agricultor morto no Pará por denunciar a ação nefasta das madeireiras livres leves e cínicas?
6. Haverá, de fato, justiça no caso do vôo da TAM que deixou 199 mortos?
E outras tantas mais que vocês saberão buscar.


V.
Em 10 de dezembro de 2008, a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS completa 60 anos de existência. Ao que parece, não há muito o que comemorar.

Que seja, então, um dia para uma atitude pessoal consciente e engajada diante da vida. Que bom se os nossos direitos são ou foram respeitados até então. Por enquanto, me toca a liberdade de expressão, sabe-se lá até quando. Mas nos sentimos bem borboleteando enquanto milhares, milhões, quiçá bilhões de outros não têm a mesma sorte que nós e seguem sendo violentados em seus direitos mais básicos?

A pensar, a sentir, a refletir, a partilhar, a agir.

São sessenta anos, sessenta anos... quanto mais esperaremos para fazer desse mundo um lugar digno para se viver?


Maria Fernanda Vomero

domingo, 7 de dezembro de 2008

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Tenho um vulcão

Quando me deram a notícia,
eu corria atrás de sonhos:
--- Você tem um vulcão aí dentro.
Nem susto nem surpresa,
talvez um pouco de pressa:
--- Quando vai despertar?

Pensava eu que tinha um útero
ou um coração,
mas não: essa fonte de tanta intensidade
era -- com beleza particular -- um vulcão.
Lava quente, espessa e úmida
entranhava por minhas veias,
por meu corpo
eclodia ganas e indignações
volúpia, chuviscos e ternura
aos poros, aos olhos, aos lábios:
demasiadas sensações.

Carregava, agora sim entendia,
um calor, uma erupção constantes
que um chamava de libido,
outro de bem-aventurança,
outro ainda de coragem.
Na fantasia, chuva de verão entre os trópicos falantes;
rárárá...

Era nada mais que esse vulcão, portanto,
entre as costelas e os intestinos,
entre meu silêncio e minhas verbalizações,
em algum lugar, entre meu tudo e meu nada.
Criadora, criatura, eu sou,
e de um vulcão.

Chama!

CONCEPCIÓN




Al querido C., gracías por la inspiración



El desayuno, un diálogo
entre pan y mantequilla
más que una palabra,
un deseo,
quizás una ciudad hija de unos cuantos países,
la semilla pide para existir:
-- ¡ay, que casi vuelo!



La mirada.
Hubo sonrisa, hubo risa
Día antes, manos juntas,
un rápido y distraído cariño:
-- enserio o bromeas?
"Te bautizo humana, mariposa, gaviota..."


Desde el pecho lleno de quereres
El corazón ferviente de ideas
-- ¡un suspiro!
y cantos venidos desde el útero hambriento
y de la boca rellena de amores


¡ Ah, eres fruto de tu tierra y de tu gente!
Entre vales y montañas,
cuantos pasos, cuantas alas
entra un rayo de luz
-- sea flujo, sea abstracción --
y se da la magia:
la concepción.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Mitrovica





Tem um brilho triste
Nos seus olhos azuis
Que enxergam cinza


― Mas eu quero as cores!


Tem solidão
Tem angústia


― Não quero ser sempre o lobo mau da história,
porque não sou o lobo mau.


Lobo -- o homem é
O lobo do homem,
Mas pode ser anjo.
Fada, xamã, amigo também.


Tem urânio na água,
Herança de uma estupidez
De grandes proporções.


Por quê?


― Por quê?


Ecoam as perguntas
Ao redor das montanhas
Que rodeiam o sítio, o sono, os sonhos
Como a circular dança dos patos
No rio sob a ponte,
a Ponte Borboleta.


Um beijo.


― Mas essa borboleta não voa.


Um policial turco toma conta dela,
Dois soldados franceses.


― Veja: um garoto de bicicleta vem do sul
para o norte.


Tão curto caminho
Entre dois pontos cardeais.

Lobo -- o homem quando quer
Vira mesmo o lobo do homem.


Metros, não sei quantos metros,
Mas a separação não alcança um quilômetro.


Borboleta que não voa é lagarta?


― Essa é a minha cidade,
O meu lar,
Minhas origens.


O azul triste
Está no céu também.
As cores?
As outras cores pintam
Artificialmente as fachadas do lado de lá
E também algumas de cá
Porque aqui os prédios
São escuros e tristes
E lá
E lá parece haver mais sorrisos
E lá a moeda é forte
Mas a felicidade não pode se comprar


― Borboleta.


Aqui a tristeza faz parte
Do ar e da água
Lá é disfarçada de conquista
Conquista de uma pseudoliberdade,
Acho eu.


-- Ponha isso no seu livro, então.


O idioma muda
Em tão poucos metros,
Mudam o estilo, a moeda, mudam as caras
- talvez mudem mesmo as caras –
Mudam os corações?
As lembranças, as dores, as digressões?


― Para entender a realidade aqui não bastam dois dias.
Uma semana, um mês.
É preciso um ano, dez, uma vida toda.
Como escrever um livro...


Vou escrever sobre você.


Olhos. Nos olhos.


― Não preciso perguntar, vou descobrindo aos pouquinhos.
Sua cor favorita é azul. Azul turquesa?


Quem são vocês,
Todos vocês, quem são?
Por quê?
Quantos porquês...
Tanta coisa para entender,
Eu aqui e você.


Meu frescor,
Sua solidão.
Confusos:
Eu para fora, você para dentro.


― Seus olhos.


Seus olhos.
Os nossos.


― Cruzou o oceano para chegar nessa merda de lugar?


Como vou entender o mundo sem vê-lo?

Sou míope
Preciso de óculos para enxergar de longe,
Assumo.

Refugiados, enclaves, ciganos,
Gente daqui, gente de lá
Quem é quem,
Qual é sua religião?


― Acendo uma vela para minha mãe numa igreja ortodoxa.
Todos os anos.
Há 21 anos.


E são tantos os monastérios,
Tantos deles profanados.
Destruídos, crucificados.
Mas também há mesquitas
– todas do lado de lá.
E muralhas invisíveis
E outras visíveis
Nos corações –
Artificiais essas muralhas,
Porque nunca nascem com a gente.


― Tenho amigos albaneses, you know.


Iknow it, but I don’t understand the distance.
Estratégias, dinheiros,
Cheiro de minas, de óleo.
Olfato assim importado
Da Europa Ocidental?
Made in USA?
Rússia ou Arábia Saudita?


― Sou sérvio e cruzo a ponte.


Sou brasileira
E quanto mais entendo
Menos sei, menos sei.


― Gosto da Albânia, país legal, e dos albanees.
Gente bacana.
Estive lá.


E nossas novelas...
Estão aqui, estão acolá,
Ensinando o português do Brasil.

― Meu sobrinho fala português.
Tem 17 anos.

Suspiro, sorrio, sorrio para você.
Você não sorri.

― Há nove anos me dedico ao trabalho humanitário.

Você não sorri.

― Estou cansado.


― Sabe do que tenho medo? Da segunda parte do jogo.


Catapum! Caem bombas!
Me lembro do tabuleiro “War”,
Inventado por não sei quem
Mapa-múndi,
Pecinhas coloridas,
Jogos de dados.
Desafio Sérvia,
Albânia aceita o desafio.
Seis e seis,
Seis e seis.
Quem ganha?
Estados Unidos.
Europa, talvez.


E saio brava, bufando,
Porque ainda não aprendi as injustiças,
Nem quero.


Quando reencontrei você,
Seus olhos continuavam tristes.
Bêbados de solidão e invariavelmente tristes.
“Sou um homem perigoso”, você me havia dito.
Perigoso por quê?


― Porque não me envolvo.


Adeus, Mitrovica.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

No palco sem fronteiras


A flor de que era feito o nosso amor.
A orquídea coadjuvante -- ou protagonista? -- está com pendão de botões. Tempo de amar se aproxima, é o que sinto. A platéia aguarda...
A flor de que será feito o nosso amor.
***
Amanhã (13 de agosto) sigo a Belgrado e meu coração está mudo. Já me sinto solitária, sem as fadas de Kars, sem as trouxinhas de Lord Ganesh da Índia, sem a companhia das oliveiras palestinas. O desconhecido...

domingo, 10 de agosto de 2008

Conto de fadas. Outra ciranda de Ferdinanda.



O caminho estava cercado por fadas
Fadas e flores
Flores e abelhas.


Ela cheirava pólen, ela cheira a pólen.
Ela...
Voava! Batia as asas sofregamente.
Puro prazer, sabia.
Missão, vocação, natureza.
Natureza...


Ah, suspiros encheram o vento de inquietações,
Inquietações gostosas, daquelas que fazem cócegas.
E então?
E então ela não sabia.
Sentia, voava, beijava as flores, ouvia as fadas.
Apostava corrida com as borboletas.
Desistiu de ter medo.


E, com a terra, as plantas todas, os solos misturados,
Os minérios, os minerais, os olhos d’água,
As línguas e os idiomas, os sabidos e os não-compreendidos,
Floresceu esplendorosamente mágica.
As fadas:
Três desejos.


Antes de dizer, experimentou. Sentiu.
Os sons todos. Memórias não-vividas explodiam.
Borbotões.
Borboletões.


Quero amar.


Arco-íris. Curvas, curvas,
Contornos, as montanhas caucasianas,
Os montes de fenos, os pastores,
Mais flores, dança de fadas.


Quero continuar voando.


Oh, o pólen.
Que delícia o pólen.
As vilas, a sabedoria, os xamãs,
Os tempos sem verbo, os verbos além dos tempos.
No princípio era o Verbo, por si mesmo princípio,
Verbo principal da conjugação primordial.


Quero sempre ser. Ser sempre. Ser.


A partir de hoje, princesa.
Colméia cheia de células,
há as escuras que guardam as sombras,
e as muito claras que guardam os desejos mais impossíveis.
E as de todos os dias, aconchegantes.
Beba do néctar,
Banhe-se em pólen.
Vente-se. Reinvente-se.
Voe. Vá, venha. Viva.
Sempre.


As flores. As fadas.
Os desejos sonhados zunidos
Ao ouvido muito atento.


O arco-íris apontou, uma vez mais,
O caminho.
Mágico esse caminho...
Cercado por fadas e flores e abelhas.
Quantas delas!

*** A profecia de Joana ***

A princesa

A princesa se preparava para entrar na Igreja de São Gregório de Tigran Honents. Noite de estrelas, lua crescente. O casamento estava próximo, mas ela não queria. NInguém podia vê-la ali. Escondida, a princesa aguçava seus sentidos. O som dos grilos, o som do rio, o som do vento. Um cântico profundo que brotava sob seus pés. Enquanto cantassem as vozes ancestrais, ela podia correr. Aquela era a igreja da promessa.
Eles não falavam a mesma língua. Eles não tinham a mesma religião. Mas se amaram. Loucamente, com os olhos, com as bocas, com os corpos. Ela, princesa. Ele, sultão.
E na Igreja de São Gregório de Tigran Honents, sob os afrescos vívidos das histórias bíblicas, sob os olhares atentos de Jesus, de Maria, dos apóstolos, dos anjos e dos pássaros que lá tinham seus ninhos, eles fizeram a promessa. Tinha uma beleza nos olhos cor de mel de ambos, na tez clara dela, na tez morena dele. Nas vogais de seus suspiros e gemidos, de seus sorrisos e de suas lágrimas ternas e mornas. Queriam ficar juntos, queriam criar uma outra nação, outro reino, outro império, uma planície de margaridas só para eles dois, e se alimentarem do mel das abelhas selvagens, tão caridosas. São Gregório, proteja-nos!
A princesa, ofegante, entrou na igreja.
Ele não estava lá.
Nos tempos imemoriais, os homens cumpriam suas promessas a não ser que.
Angustiada, ela adormeceu atrás do altar. Que meus sonhos me levem daqui, pensou.
Que seus sonhos a tragam aqui, sempre, ouviu.
Voz feminina.
Abriu os olhos. Uma jovem alta, loura, cabelos raspados, olhos azuis, roupas em farrapos, olhava lúcida e carinhosa para ela.
Ele. Ele não pode vir. Ele jamais poderá vir. Ele está preso à lua crescente, à estrela, ao vermelho do sangue das conquistas.
A princesa sentiu a dor das impossibilidades.
Não, não sofra. Doa apenas. Impossível não existe.
Joana?, balbuciou a princesa, sem controle sobre suas palavras.
Sou eu. Sabia que você se lembraria de mim -- foi você quem me sorriu antes da fogueira me arder. E eu me prometi curá-la da dor, fazer de tudo para voltar ao momento do corte mais profundo e lhe dizer que o impossível não existe.
Mas ele...?
Ele foi no momento que tinha que ser, princesa.
Os cânticos lá de fora se fizeram mais forte. As estrelas também cantaram. A lua, a lua crescente, a lua-luta que aprisionava seu amante, até a lua ajudou a entoar o lá. O lá e o sol. Dó.
Mas e eu...?
Você, princesa, você voltará sempre aqui quando o amor se anunciar. Essa será sua compensação, por assim dizer. Você, sempre princesa. Você, de tempos em tempos aqui. Trazida pelo vento, pelas abelhas, olvidada dos passados todos. Mas escutará os cânticos que ouve agora, se lembrará do sultão, voltará a ser princesa e amará. Amará loucamente. Amará perdidamente. Para depois se esquecer e ser esquecida, mas eternizada nas doçuras dos amantes. Como o sultão lhe pensa agora: doce, melada de amor e de desejo, de sonhos e da ausência dele.
Joana...
Eu não sofri, princesa. Porque você brilha sempre. E eu amava naquele momento, e você brilhou para mim. E você me adoçou, me adocicou e me salvou.
Uma nota fora do tom dos cânticos da terra acordou a princesa. Assustada, não enxergou mais nada. Pediu uma vez mais proteção a São Gregório e deixou a igreja. Correu, correu, correu, escapando do casamento arranjado, do corte profundo, do destino fatalista.


E quando voltou era brasileira, tinha 33 anos, falava português e vestia uma saia marrom.
E Joana estava de novo lá, cumprindo a promessa das lembranças todas.

Das lembranças todas.

Joana, à esquerda, em sua última aparição





>>> "Just in time", na voz de Nina Simone

"I want you", na voz do Skank <<<

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Faces de um novo mundo

Somos poetas de um tempo presente.
De uma vida presente.



Cantamos -- e carregamos muitos outros conosco.


Havemos de amanhecer, poetas, havemos de amanhecer.

Por isso, continuemos a entoar nossos versos de alvorada não importa a vista alheia cansada ou nosso cansaço mesmo.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Paisagem da varanda


O Bósforo está ali na frente.
E meu coração, cá dentro, cuja batida anda um pouco ofuscada pelas tosses que ecoam fundo nos pulmões, suspira em contentice desmedida. Um dia a gente casa, Istambul, um dia a gente casa.
Fico feliz em constatar que, embora viajando e caminhando e vendo muito, não perdi a capacidade de me extasiar com as paisagens do momento presente. São lindas, sempre. Porque são do aqui, porque são de agora.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Namastê!


A pura linguagem da paz!

(da casa da Poornima, em Talguppa:)

A fumaça não inocente
lacrimeja meus olhos
atentos: quero ver
mas ainda não sei

Vim em busca das
sementes
que agora carrego no coração
e nos pés
-- descalços esses pés --

A primeira parte
de meu mergulho
foi o desapego da casca:
que brote a semente,
que germine

Caminhos rurais
A chuva que não vem
A chuva que encharca
e naufraga superficialidades

Tempo de renascimentos
e crescimentos e de momentos

Fogo consome certezas
certitumbres, certificados
Traz essa fumaça dolorida

O broto deixa também a casca
diz adeus à polpa:
cresce.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Poema que ganhei de presente


O autor é o Ivan, bonitão e fofíssimo. A foto foi tirada em meu bota-fora.


A SAUDADE


Muda de pedras

vivo do desfeito

e do esvaído que colhem as minhas mãos




Nessa areia

muitas vezes movediça

grão trás grão

forma-se a argila agridoce do meu tempo



O que me demove é apenas o simples

ardor do impossível

já que sou eu mesma

resgatando minhas canções

de vísceras e epifanias

e é no vento que minha dança se inspira

pra arrastar até o esquecimento

as fronteiras da minha ciranda



Não tenho lugar

e nem posso:

onde brota a raiz primeira que a lágrima semeou?

meu ofício é extirpar ausências

em balaios abarrotados de séculos

que me veneram




Meu paradigma é a razão do Divino

não busca o que foi

mas o que poderia ter sido




E como imortal

o maior prazer que tenho

é servir de altarpara a rendição



(para Maria Fernanda, madrugada de 9 de junho de 2008)

sábado, 7 de junho de 2008

Minhas mãos e o mais imenso dos sentimentos


Cuidem bem das flores, Heba e Iman. Voltarei para ajudá-las a regar seu jardim.

Qussay, obrigada pela flor que plantou em mim. Ela é linda e vai seguir seu caminho ao som de "Send in the Clowns" -- você sabe a que me refiro.

A gente quer mudar o mundo



A turma da bola-bandeira-pra-frente: eu (com um rosto cada vez mais jovem, estou voltando a ser bebê...), Areej e Nidal.


Areej é inteligentíssima; tem 23 anos, super engajada, coordena projetos relacionados a mulheres, jovens e memória. Quer ser primeira ministra da Palestina.

O quieto e charmoso Nidal tem esperança. Palestino com orgulho.

E eu me autodenominei embaixadora brasileira para assuntos extraordinariamente humanos. Brasil no peito e os retalhos todos do meu mundo interno conectando o mundo externo. Sigo com a saia-síntese. Eu não a largo, ela não me larga, juntas vamos.



*



A turma da câmera na mão, um monte de idéias confusas na cabeça e o grande desejo de pintar esse mundo de novo, desta vez com mais ternura e mais honestidade, mais fé e mais respeito.

>> Mussa, palestino, Daniel, alemão, eu, e o escocês Steve.
>> Na outra foto, nós de novo e a alemã-fofa Kathy, minha irmã mais nova!


Obs.: Voltei pro Dheisheh Camp. Adoro esse lugar!!!

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Natividade

Quando o olhei de perfil, imediatamente notei os cílios longos e escuros. Um homem de cílios longos. Embora no início dos seus 20 anos, é surpreendentemente maduro. Podia ser rapaz, um rapaz de cílios longos, mas jamais garoto, como muitos que ainda engatinham no aprendizado da apreensão do mundo e das pessoas.

Já sinto saudade desses cílios longos, que acariciam o mundo que os olhos enxergam. Mundo de opressão, mundo de ocupação, mundo de conflito, mundo de dilemas e problemas. Mas os cílios.
Esses cílios seus.

Observo os detalhes, os dentes que escapam da arcada, conferindo charme ao sorriso largo e sincero. Os ombros estreitos, os braços finos. Cigarro. Algum gel no cabelo liso e negro. Como os olhos, as sombrancelhas, os começos de barba. Ah, esses cílios longos, esse sorriso.

Estou no início de minha navegação. Ilha Desconhecida ainda ensaia suas despedidas da baía primeira, embora já em alto mar, trata-se apenas do começo. Coração muito elástico de desejos e sonhos, mas miudinho pelo início do parto de mim mesma. Sem expectativas quanto a, pois o tempo é curto e o movimento, necessário.

Mas a epifania.
O sorriso.
E os cílios longos.
Quebrando regras e muros, os dois.
Conexão imediata.

Meus olhos estavam distraídos, curiosos mas fugazes. Porém, foram os olhos de cílios longos que me acharam e fizeram cócegas no meu olhar a fim de chamar-lhe a atenção. E meus olhos curiosos, lacrimosos naquele dia por tantas sentimentalidades, ficaram encantados.

E aqui estou eu, uma década de vida na frente, mas tão presente nesses olhos de cílios lindos e longos que confortam, acariciam e me reconhecem como uma pessoa -- inteira, faceira e primeira.

Vou sentir saudade, Q.
Q de Querido.


(emprestado do outro blog, mas continua apropriado...)

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Estrelas. Cristais. Flores que viram árvores.



Ainda não vi os cristais que dizem brotar nas árvores durante o inverno, mas creio ter ouvido estrelas.


Certo perdeste o senso, repete o amigo do amigo do amigo do poeta, alguém que não entende bem das coisas.
Dos cristais.
De garoa.
De epifanias.



Estrelas de Belém, estrelas de Hebron, estrelas dos profetas. Persistentes, sobreviventes. Como as flores nos jardins cercados por muros e arames e fuzis e rancores.



Últimos dias de fortes emoções.
Coração estrelado estraçalhado ainda apaixonado, não se sabe se correspondido em igual medida, mas quem precisa saber? Sentir, isso sim.


Coração estrelado humilhado pelo olhar arrogante e sarcástico dos assentados judeus que caminham, provocadores ostensivos, pelas ruelas do centro velho de Hebron. Choro por vocês, ó fanáticos cegos-surdos-escandalosos.


Coração estrelado indignado dançando e cantando sambinhas diante de estarrecidos soldadecos israelenses pretensos protetores da ordem e dos costumes ultra-ortodoxos dos fanáticos que vivem nos assentamentos.


Câmeras na mão, quantas flores brotando no coração. Dois fuzis apontados para mim. Mas o punho firme não deixou a imagem esmorecer. Registro. Intimidação. Brasil 1 X 0 Israel. Ufa, dessa vez escapei.


Ah, ora direis ouvir estrelas...
Porque os cristais das árvores invernais só são descobertos quando os sussurros da alma são ouvidos. Preciosidades, joinhas, epifanias.


Árvores começam broto, broto nasce semente.
Tenho muito chão e muita semente pela frente. Mas me emociono ao olhar para os jardins que venho encontrando, que venho deixando, que tenho ajudado a capinar. Quanto broto, meu Deus.


Ora, dirás, virão árvores cheias de cristais... Certo perdeste o senso, mulher!

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A responsabilidade de ter olhos




Se puder olhar, olhe.
Olhe e veja.
Veja e enxergue.
Então, partilhe.
"A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam."
José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira

Tempo de libertação. Interior, antes de tudo.

Leio na internet que o dramaturgo e diretor teatral Gerald Thomas foi convidado a participar de um debate na UFRGS. O título da nota era: "Declarações de Gerald Thomas revoltam comunidade judaica".

Ih, pensei.
Em nosso mundinho ocidental-umbigal-pseudocosmopolita, a gente acha que os outros é que são extremistas: "Essa turma do Islã", por exemplo. Porém, os judeus podem ser tão radicais quanto. Assim como os cristãos -- de quaisquer grupos, dos integrantes da Opus Dei aos pentecostais fundamentalistas -- e denominações como Testemunhas de Jeová e mórmons. Imagino que haja linhas budistas, hindus ou afins que também se apegam, a despeito dos princípios mais simples das religiões, à tentação do poder e do saber (saber humano).
Porque, me desculpem, parece que as instituições religiosas têm esquecido Deus e seus livros sagrados para se dedicarem a jogos de domínio e controle.

Pois bem, voltando a Gerald Thomas. A nota conta que ele afirmou o seguinte: "Sou neto de pessoas que morreram no Holocausto e isso não me dá o direito de pisar em nada. Acho isso um horror, a indústria do Holocausto". E foi adiante: "Sou contra o Estado de Israel. Terra prometida por quem? Quando estive lá, a convite da revista “Caras”, sim, porque com meu dinheiro jamais iria, quis apertar a mão de Yasser Arafat."

Não vou defender Thomas. Creio que ele foi agressivo em seu modo de falar; no entanto, o conteúdo de sua declaração é verdadeiro. O holocausto do século 20 não dá direito algum aos judeus israelenses de recriarem um novo holocausto no século 21.
E é isso que, gradativamente, paulatinamente, silenciosamente, vem acontecendo aqui, em terras palestinas. Sim, terras palestinas: a antiga Cisjordânia, hoje território ocupado -- no sentido mais agressivo do termo -- por Israel. Os guetos já começaram, haja vista o muro construído pelos israelenses que não só rouba nacos de terra do que seria a Palestina segundo o Acordo de Oslo como frisa a separação e a discriminação.
(Guetos. (Ou: histórias que precisam ser reescritas...).

Gerald Thomas foi vaiado e, segundo a nota, os judeus presentes se retiraram do salão. Será que foram buscar informações sobre a ocupação israelense, se isso é verdade ou não, ou preferiram trancar-se no achismo da tal "terra prometida"?

Que religiões são essas que se acham distribuidoras de senhas para a participação do reino dos céus, da experiência da iluminação, do grupo dos escolhidos, dos detentores da terra prometida?

É tempo de repensarmos nossas posições e nossos radicalismos.
Tempo de parar com essa bobagem de nos acharmos os detentores da verdade, quando a Verdade -- com "V" maiúsculo -- está aí para todos. É tempo de nos reconectarmos com Deus e com os outros seres humanos. Religare.
Religare, gente.
Religare.

domingo, 25 de maio de 2008

*** Transfiguração ***



Ao pequeno Jihad, de 4 anos, com desejos
de que ele escape da sina de ser mais um mártir. Ou um prisioneiro.
E possa contemplar, absorto, o nascimento da imensidão.




Nem vazio,
nem deserto:
silêncio.



Um grande sertão.
Veredas de águas claras
encorajando
tantos corações esgazeados.
Ah, e como é bom.



O sepulcro vazio
escancara a vitória
abundante
que se quer próxima e íngreme
sem pódios
sem festejos fugazes
sem vazios.

com o silêncio.
Testemunhante.



Na quiescência plena da vida,
o moleque contempla
absorto
o nascimento da imensidão.
Reluz.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Humanidade, essa grande desconhecida





Ibrahim me diz: eu tenho esperança. Eu acredito na revolução. Bebemos cerveja num bar em Beit Jala, área de maioria cristã na grande Belém. Ibrahim é muçulmano, teoricamente não deve ingerir álcool, mas vez ou outra não resiste, ainda mais quando está entre os estrangeiros do Ibdaa Center. Acredito, ele me diz, que, quando alguém como você vem até aqui, uma pequena mudança já está em curso. Você voltará a seu país e contará a seus amigos o que viu, o que sentiu. E isso já fará diferença.



Ibrahim vive no Dheisheh Camp (fotos acima). Não somos donos de nossas casas, ele conta. Afinal, o dinheiro para o aluguel, água (quando não falta) e luz vem das Nações Unidas. Porém, sua família tem uma terra de origem, um vilarejo, hoje ocupado por Israel. E nessa terra de origem, sua família tem direito a um quinhão de chão. Mas eles não podem voltar: tal quinhão já não lhes pertence mais.




Breve momento de digressão. João Cabral de Melo Neto pede para circular entre meus pensamentos. "Essa cova em que estás,/ com palmos medida,/ é a conta menor/ que tiraste em vida./ É de bom tamanho,/ nem largo nem fundo,/ é a parte que te cabe/ deste latifúndio./ Não é cova grande,/ é cova medida,/ é a terra que querias/ ver dividida."


Nos parecemos mais do que imaginamos, é o que penso.

E como fazer a revolução?





O jovem Aysar confessa: quando mais novo, admirava os jovens que, keffiyeh enrolado no rosto deixando apenas os olhos à mostra, armas na mão, enfrentavam os soldados israelenses. Certo dia, topou com um deles numa das labirínticas ruas do campo. Gritou de emoção. Levou um peteleco: não berre, criança, os soldados vão ouvir e descobrir onde estou. Em outro momento, ainda miúdo de tudo, perdeu-se numa das ruelas do Dheisheh. Um soldado israelense acolheu-o nos braços e lhe perguntou qual era sua família. Levou o garotinho para sua casa. Aysar diz: não é por isso que vou gostar dos israelenses. Momento de silêncio. Aysar acende o cigarro -- como a maioria dos homens daqui, fuma um atrás do outro -- e olha pela janela.


Ele só conheceu seu pai quando tinha uns cinco anos de idade. Quando nasceu, o pai, membro da Frente Popular para a Libertação da Palestina, grupo político comunista, estava preso. "Quem é esse homem que vai dormir no seu quarto, mamãe?", perguntou na primeira noite em que viu o pai. Hoje, os conselhos paternos lhe parecem bem pertinentes: há outros caminhos para a revolução e para a paz.


Vários amigos de Aysar foram parar na prisão. Outros, assassinados. Ghassan, por exemplo, passou sete anos em diferentes presídios israelenses. Foi membro da FPLP e, além de agitador e líder, em sua acusação pesa o artigo "51A": ele tentou matar um soldado israelense. Admirado no campo, Ghassan já não acredita mais nos partidos políticos, hoje faria diferente, e partilha sua experiência -- e todos os seus aprendizados dos tempos da prisão -- com os jovens do Dheisheh.


Moyad é outro amigo de Aysar. Ele carrega uma bala instalada entre as vértebras, na região do coração. Durante a Segunda Intifada, jogava pedra nos israelenses. Um dia, foi a um dos check-points de Belém com os amigos. Atiraram pedras no jipe onde estavam três soldados. De repente, apareceu um quarto, arma em punho, e começaram os disparos. Moyad e um amigo foram atingidos. Meses depois, já recuperado, Moyad foi preso: alguém o denunciou aos israelenses.


Aysar diz que espiões palestinos são comuns. Em troca de garantias ou facilidades, eles mudam de lado e passam a dedar os conterrâneos. Aysar acende outro cigarro, conta a história de um professor que foi denunciado pelo próprio cunhado. Às vezes, esses "espiões" não têm escolha, ele fala, mas geralmente têm.


Que sabemos nós da humanidade quando não estamos conectados a nossa própria humanidade, perdidos em pensamentos mesquinhos e desejos superficiais e insaciáveis?
A alma sussurra a missão de cada um: semear, cultivar, colher ou distribuir. A todos nós, cabe partilhar. Semeanos na terra do outro? Cultivamos a semente alheia? Colhemos o fruto que não geramos? Distribuímos a colheita que encontramos? Partilhamos vida, a nossa, com o outro?
Perguntas que busco, com serenidade, curiosidade e espanto. Sim, amigos queridos usaram esse termo: "espanto". A capacidade de me espantar com o que há. O olhar da criança, do palhaço, do amante apaixonado.
No Caminho, com Maiakovski (pelo poeta Eduardo Alves da Costa):
Tu sabes,conheces melhor do que eua velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flordo nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores, matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Uma amiga se lembra da canção e partilha:
Drão
o amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
plantar nalgum lugar
Ressuscitar no chão
nossa semeadura
RESSUSCITAR NO CHÃO!!!

Yasser Arafat não morreu!


Um sósia do carismático e querido líder palestino, morto em 2004, deu uma canjinha nas celebrações relacionadas à Nakba ("Catástrofe"), que ocorreram no sábado 17, na escola mantida pela ONU no Campo de Refugiados Dheisheh, em Belém. Foi sucesso absoluto de público: tirou fotos, apertou mãos, distribuiu autógrafos e até discursou!

Também nesse mesmo sábado tive meu momento popstar. Logo depois dos shows de danças típicas, de uma esquete teatral sobre a ocupação israelense (o casal árabe, caricato, era hilário) e de apresentações musicais, antes de eu deixar o local para voltar ao Ibdaa Center, fui cercada por meninas e adolescentes palestinas. Elas me abraçavam, perguntavam meu nome, de onde eu vinha, quantos anos tinha, tocavam meu cabelo, elogiavam meus olhos, pediam para que eu dançasse, me convidavam para tomar chá. Somente vinte minutos mais tarde, consegui atravessar as poucas centenas de metros que me separavam do Ibdaa, atordoada, mas feliz! Ismee Maryam, fursa sa'ida!

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Um sonho chamado Jerusalém




















Khaled dirige o Ibdaa, centro educativo e cultural localizado numa das entradas do Campo de Refugiados Dheisheh, bem ao lado das instalações da ONU que oferecem atendimento médico à comunidade. Khaled também dirige o carro que nos leva a Ramallah, capital política dos territórios palestinos. Vamos assistir a um show de dança folclórica em memória dos 60 anos da Nakba (“a catástrofe”), quando os palestinos tiveram de deixar parte de seu território por conta da criação do Estado de Israel. Até o tempo mudou: o sol que queimava a pele e ressaltava ainda mais os tons areia da “pedra de Jerusalém” deu lugar a nuvens e vento gelado. Não há perspectiva de chuva: é primavera no Oriente Médio, quase verão. E a umidade que não veio no inverno passado certamente não virá agora. As famílias do campo Dheisheh sabem disso: tem faltado água com freqüência.

Khaled, então, me explica: teoricamente, seria fácil chegar a Ramallah saindo de Belém. Praticamente uma linha reta. Porém, no meio do caminho há Jerusalém. E Jerusalém, sob o controle israelense, está fechada a muitos palestinos, àqueles que não tem permissão ou a chamada “ID azul”, que dá direito a um entra-e-sai da cidade. Em todas as vias de e para Jerusalém, existem check-points. Assim, para alcançar Ramallah, temos de dar uma volta, passar perto de Jericó, a nordeste, e então retornar.

— Conheço Roma, conheço Paris, conheço várias cidades no mundo. Mas se você me perguntar como é Jerusalém hoje, não sei responder. Há quinze anos não vou lá. Não tenho permissão.

Tem um tanto de revolta na voz de Khaled, mas o tom carrega muito mais na nostalgia e na tristeza. O dia hoje esteve, na verdade, carregado de nostalgia e tristeza. Às duas da tarde, no outro campo de refugiados palestinos em Belém, o Aida, foram lançados ao céu balões negros em quantidade equivalente ao número de dias desde a criação do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948. Não havia revolta. Mas a nostalgia misturava-se com a tristeza nas músicas, nas danças, nos rostos das avós e nos suspiros dos jovens. Nos edifícios mais altos de Belém, foram projetadas fotos em PB sobre a sina do povo palestino. Bush, naquele momento, diante do parlamento israelense, falava em luta contra o terror. A possibilidade de que falte água, continue a faltar emprego, que mais terras sejam confiscadas e check-points sejam instalados causa terror nas gentes. Mas Bush não falava disso, acho eu.

Finalmente chegamos a Ramallah. Lembrei-me do poeta e escritor Mourid Barghouti em seu belo “Eu Vi Ramallah”, no qual relata seu retorno à terra que lhe pariu. Exílio é algo dolorido, dolorido. Ser privado da experiência de estar entre seu próprio povo dilacera qualquer coração. Ele diz: “Eu não vivo num lugar, vivo no tempo. Nos componentes de minha psique. Vivo numa sensibilidade só minha.”

Khaled sonha em voltar a ver Jerusalém, um dia.

domingo, 11 de maio de 2008

LIVRE!!!




Sou livre.
Heroína ou vilã porque quero.
Sou pobre?
Sou rica
Em emoções.
Sou poeta,
Não sou descrente.
Faço arte porque sou gente.

Imensidão de indivíduo



Petra, Petra, Petra: maravilha da Jordânia
2007 (MFV)


Me disse Barthes:
— A vida é assim,
feita a golpes de pequenas solidões.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Tempo de travessia

(por Pablo, 2004)



É tempo de travessia, eu sei. Travessia no sentido mais pessoal e mais Pessoa do termo. Mas não contenho as lágrimas. Olho para meu quarto bagunçado, para o meu cotidiano espalhado sobre a cama, o carpete, a mesa do computador. A estante em desordem, o armário quase ajeitado, meus espaços, meus tão reconhecidos e conhecidos espaços, e as lágrimas pedindo liberdade dos meus olhos. Queremos escorrer até a alma, me suplicam.
Fique, você poderia dizer. Você até diz. De um jeito ou de outro, escuto você falar. Mesmo que nem se dê conta. Eu também quero ficar. Mas igualmente quero ir.
Parece simples. Outros foram antes de mim: cursos longos de inglês, round-the-world trip em casal, turismo de bicicleta, amigo morando em Paris, amiga que acabou de voltar da Austrália, outra que ficou dois anos fora e eu a acompanhei ao aeroporto. Diante de todos eles, tanto você quanto eu tínhamos a certeza do retorno. Mas... e eu? Por que eu não tenho tal certeza?
O frio lá de fora parece um frio imenso e universal. Um frio que me coloca no aconchego do lar. Meu lar. Eu, você, nós, todos juntos. Mas meu bote está na margem e me espera, o bote que eu construí, no qual pus todo meu empenho e minha motivação. E agora tenho medo de subir nele. Tenho medo de me sentir só. De estar no meio da travessia, do rio, correntes, ventanias, e me sentir só. Sem você, sem ela, sem ele. Você sabe disso.
Do outro lado da margem, nenhuma expectativa. Como você atravessa um rio sem esperar nada? Não sei, mas assim ocorre. Sinto apenas que devo atravessar. Estarei à minha espera lá do outro lado. Não sei se caberei nas antigas roupas. Se o armário será ainda aquele meu armário. Se você será você, se nós nos reconheceremos de novo.
Mas há um rio. O rio tem duas margens. O rio leva ao mar.
Talvez nosso medo, o meu e o seu, seja o de que eu jamais retorne à primeira margem. Que eu me encante de tal forma que siga direto para o mar.
Anteontem machuquei o dedo, o polegar esquerdo. Fiz um corte. Saiu sangue. Pingou no chão, doeu. Carregarei a pequena cicatriz comigo. Pois então. A gente sabe que, se eu for, quando eu for, preciso ir inteira e levar meu coração. Você vai nele, é claro. Mas ele vai comigo, meu coração vai todo comigo. Por isso também choro, de saudade, de carinho, de não poder expressar meu afeto com meus braços. De olhar, desde o bote, e vê-los na margem primeira. De ter de fazer o périplo para voltar.
Por que você não fica?, uma última tentativa.
Porque, se eu não atravessar, jamais saberei quem sou de verdade! Mas, acredite, não é fácil. Não é fácil. Não quero ser só forte agora, quero ser corajosa. E permitir que venham todos os choros, todos os cansaços, todos os enjôos, todos os suores. Porque vão passar.


Você vai me acompanhar, não é?

segunda-feira, 28 de abril de 2008

* * * epifania do dia +++

Hoje me dei conta de que, por mero acaso ou pela mais suave das inconsciências, devo terminar a primeira parte de minha jornada pela paz justamente em... La Paz! Sensacional!

terça-feira, 15 de abril de 2008

Delírios e descobertas

(MF, 2007)



O que são esses caminhos da alma?
Para onde nos conduzem os sussurros mais profundos de nossos corações?
No silêncio da jornada, o cantarolar de Deus faz eco e produz brisas e ventos e ondas que nos carregam para caminhos nunca antes desbravados.

Deus me trouxe aqui e vai me levar acolá. A jornada só tem fim quando eu chegar até o Divino.

Deus se fazendo aqui e agora em minha vida, reacendendo a fagulha divina que carrego e me ensinando, de novo, de novo, que ninguém carrega uma lâmpada para colocá-la embaixo da cama (ou do amontoado de roupa suja, ou da sola do sapato de salto alto, ou do mundaréu de reclamações e tralhas cotidianas, ou da perfumada loção pós-barba).


Deus acendeu holofotes no meu caminho e me transformou em lamparina ambulante! Que lindo! Naquele já longínquo 25 de novembro, quando desembarquei na amada Istambul, vi os dervixes girarem e girarem expressando seu amor pelo Amor. O grande aprendizado da entrega verdadeira: na pequenez de nossa humanidade, desdenhamos do risco porque a (falsa) segurança dos caminhos tão esgarçados e tão conhecidos sempre parece mais confortável. Porém, se nos lançamos na grande piscina desse Amor, nos tornamos Um e nos tornamos canais para a expressão da Verdade. Aos poucos, depois de saudarem o Grandíssimo, representado por uma pele de carneiro, os dervixes começam sua dança. Rodopiam, abrindo aos poucos os braços, deixando para trás quaisquer laços, disponibilizando o coração para a experiência do Amor.


Amor!
Uma conexão profunda com a humanidade no hoje, no aqui e agora, no ontem e no amanha.
Papo demasiado cabeça? Não e não e não. Sussurros anímicos, isso sim. Muitos deles.

E cá estou eu, aqui em Selçuk (se pronuncia Seltchuk), sudoeste da Turquia, cidade pequena e charmosinha. Uma ilha urbana cercada por terras cultivadas por todos os lados. Inverno. As arvorezinhas de tangerina (mandalina) exibem-se charmosas por todas as partes, contrastando com os desnudos pessegueiros, encolhidos nessa época tão gelada. No horizonte, as altas e imponentes montanhas da Anatólia. Cenário bonito, agricultura combinando com a natureza rochosa.

Por perto, encontra-se a casinha onde se acredita que Maria viveu, depois de sua passagem por Éfeso, acompanhada por Sao João (depois que Jesus confiou um ao outro). No caminho para lá, Barış (le-se Barish), meu anfitrião, deu carona para uma jovem freira alemã. Ela nos contou que está há três semanas na Turquia, em Selçuk, e diariamente vai à casa de Maria -- transformada numa espécie de capela -- para rezar. Com um sorriso no rosto, olhos reluzentes de Amor, me disse: é o lugar mais lindo da Turquia!

E o que dizer de Éfeso? Nos primórdios uma cidade comercial dedicada à deusa Cibele, da fertilidade. Depois, com a chegada dos romanos, Éfeso tornou-se a capital da Ásia Menor e Cibele virou Diana (Artemis). Cerca de 250 mil pessoas chegaram a morar por lá -- entre elas, o apóstolo Paulo. Também por ali foi realizado o Terceiro Concilio, em 431.
Imaginem o que é caminhar pelas ruínas de Éfeso... O imponente teatro, a magnífica fachada da Biblioteca Celsius e suas estátuas bem conservadas, o caminho sagrado, as tumbas, os banheiros romanos... Senti uma atmosfera mágica lá. Uma sensação de que carregamos no hoje o ontem e o amanhã integrados. Mas é preciso deixar os poros abertos -- se está difícil pelo caminho da alma, sugiro a vocês uma sessão de banho turco, com esfoliação e tudo, hehehe! É um bom começo.


A imponente basílica de São João, cujas ruínas estão bem preservadas, também fez parte de Éfeso, mas foi acrescentada posteriormente. É um passeio a parte... Mágico tambem.


E hoje foi o dia de Pamukkale e suas travertines, formações naturais compostas de carbonato de cálcio. Uma paisagem de brancura brilhante, quase parecida com a neve que vi pela primeira vez no sábado passado, numa montanha nas proximidades de Istambul. As travertines foram muito exploradas pelo turismo no passado e podemos constatar seu "esgotamento" atualmente, mas continuam sendo impressionantes. Nas proximidades, as ruínas de Hierópolis, centro de cura do passado. Ao contrarıo de Éfeso, Hierópolis é menos exuberante por conta de um terremoto fulminante no passado. Muito foi posto abaixo -- o governo reconstruiu alguns monumentos com o material original. Como o teatro romano, por exemplo, belíssimo.


Caminhadas e passeios a parte, sigo em minha experiencia gastronomica, sensorial e emocional.
Cheguei a mim mesma -- e essa viagem nem terminou.
Chegar a si mesmo é algo fantástico e tão profundo que me sinto em constante queda livre desde então. Mas estou caindo no Amor, em realidade, estou flutuando no Amor.

A partir de agora, minha missão é partilhar, compartir, compartilhar, espalhar esse Amor.
E, quem sabe, no futuro, parir mundinhos.



07/12/07

terça-feira, 11 de março de 2008

Crônica de um retorno anunciado



Madri. Faltavam mais ou menos quinze minutos para as nove da noite, e eu estava na linha azul claro em direção à estação Tribunal. Ainda teria de fazer outras duas baldeações, mas isso não era um problema. Chegaria ao aeroporto em cerca de trinta minutos, nem muito cedo nem muito tarde para o check-in. Na parada Sol, subiu um homem alto, branco de pele judiada, bigode grisalho, violão nos braços, microfone à Madonna.
Eu sentada, mochila grande nas costas, mochila pequena no peito.
Havia uma jovem meio gótica, outra de cabelos longos, um cinqüentão bonito, uma senhora ajeitadinha, um rapaz de olhar em dúvida e de moletom, uma oriental e seu bebê, um cara de feições indígenas latino-americanas, uma mulher elegante e seus óculos de armação superbacana, outras tantas pessoas.
O homem, então, começou a cantar – e cantava num italiano espanholado:

"Che sará, che sará, che sará, che sará della mia vita, chi lo sá? So far tutto o forse niente da domani si vedra, che sará..."

Eu me emocionei. Lágrimas no metrô, enquanto os outros olhos distraíam-se.
O que será?
Rio São Francisco em seu caminho ou Rio São Francisco transposto?
Meryem & Fernanda Ilimitada, livre e leve e solta sem CPMF, mas ainda tributada, rumo a...?


No vôo superlotado do avião imenso da Ibéria, paella para jantar, tinha ao meu lado Estela, paraguaia aos 37, três filhos e três anos de labuta em Madri. Duas irmãs na capital espanhola, uma delas casada com um nativo. Filhos e restante da família (inclusive "un marido que no sirve") em Ciudad del Este. Outra pessoa depois desse tempo de sacrifício em prol de uma vida melhor para todos, já que a situação socioeconômica do Paraguai está cada vez mais precária. Mas ninguém fala nada do país que ainda fala guarani; há petróleo ou gás natural por lá? Há Amazônia? Há Cordilheira dos Andes e zona de minérios? Há costa? Não, não há. Há pessoas apenas. Ah, então o mundo não se interessa. O mundo pouco se importa em saber como vivem Estela, seus filhos, sua família e seu marido que no sirve. Na América do Sul de poucos países, dos países loucos pero que todavía importan, há o meu país. E no meu país, que ainda importa aos países importantes do mundo, a situação também continua precária (já soube do absurdo que se passou no Pará).
Estela, enquanto aguardávamos por uma hora que comandante e torre decidissem levantar aquele avião do solo madrileño, falava em guarani com irmã pelo celular. Guarani soa bonito. Guarani é a língua ainda não colonizada. Dá-lhe, Paraguai, te respeito pra caramba. Eu me importo.

Do lado direito, mas com um corredor entre nós, estava Alexia, 8 anos de idade, longos e cheios e lindos cabelos louros e olhos azuis. Alexia tão brasileira quanto eu. Nos momentos em que a luz do avião seguia acesa, Alexia desenhava em seu caderninho e brincava com as cores de seus lápis de cor. Alexia desenhava rápido. Alexia me lembrou eu mesma, na década dos 10. No caderninho, em traços já seguros e com personalidade (essa menina, se seguir nesse caminho, vai ser um gênio), uma loura toma um café em Paris. A Torre Eiffel brilha em contraste com o céu azul. A chama acesa no monumento aos soldados mortos. Era para ser uma girafa, mas virou o rosto de uma mulher – "porque errei o contorno e não tinha borracha". Ficou genial, Alexia, os melhores desenhos surgem de situações assim. Árvores de Natal, uma ovelha. Alexia recria o mundo com os lápis de cor. E eu me reconecto comigo mesma naquele momento colorido. E digo ao irmão dela, que me mostrou o relógio de pulso comprado um dia antes: os desenhos da Alexia são os mais legais. O seu relógio é o mais legal. Mas o meu tênis... meu tênis é o mais legal. E ele concorda, Alexia concorda. Estela, quando vê, diz: "mira, niña, que ahora es tiempo de comprarte otro..."

Então desembarco com ambos sapatos furados, e dos dois lados, quatro furos que não se permitiram costurar e romperam todas as linhas de disfarce. Pés around the world. A calça jeans também rasgada, o cabelo espigado, a bochecha corada, o passaporte aberto na página da foto. A mulher da foto, de 2005, parece mais velha que a mulher que carrega as duas mochilas, o tênis mais legal do mundo, cinco quilos a mais – três adquiridos na viagem mexicana, dois graças ao humus palestino e aos doces turcos –, apenas duas mãos e o sentimento do mundo. O coração cheio do Amor.

O que será, o que será, o que será de minha vida, o que será?
Je suis arrivée, comme ça.
E, embora o sol no céu azul e os 28 graus que eu esperava não estavam à minha espera, havia pão de queijo. E tutu de feijão da mamãe que andou perdendo uns chumaços de cabelo e parte dos cílios por conta da quimioterapia, mas segue vendo – e vivendo – a vida com galhardia e coragem. E segue bonita que só. Como seguem bonitos o irmão e a tia e meu lírio da paz, que me esperava com as folhagens sempre exuberantes e quatro flores.

Bem-vindas, flores do lírio da paz.
A jornada está apenas começando.

Anuncio o retorno: volto para o mundo.

16/12/07

Vento, ventania

“O vento, num dia radioso, certa vez chamou.”
Antonio Machado




Segunda-feira. No princípio, eram o vento e as janelas. O vento que teimava em manter todas as janelas abertas e, vez ou outra, as sacudia com vontade. As janelas que iluminavam o apartamento e o coração e permitiam o entra-e-sai de sonhos e esperanças, de desejos e vontades, de planos e de medos, de intenções não-ditas. Depois, vieram o branco e o azul. Nas casinhas de La Goulette e em outras tantas da serena, franco-árabe e demodée Túnis, mas também naqueles olhos que me olhavam com suavidade e me reconheciam ternamente como outra pessoa, numa espécie de concretização das pequenas epifanias de Caio Fernando Abreu. Em seguida, chegaram a despedida, o aeroporto e o céu, cuja perspectiva transformou a simpática capital da Tunísia num mosaico à altura daqueles que o magnífico Museu do Bardo, com sua coleção da época bizantina, abriga. Seria pedir demais conter o choro. As lágrimas foram azuis, pois os olhos castanhos não conseguem mais apagar da retina os olhos azuis, as casinhas de telhado azul, o azul dos azulejos, o azulado da Medina, o azul do mar abaixo, a brancura de todo aquele azul.


Na quarta passagem pelo Charles de Gaulle, o moço da alfândega pergunta a origem da cicatriz no pescoço da moça, antes mesmo de pedir o passaporte. Em poucos minutos, todo o pessoal da segurança está conversando com a jeune fille brésilienne: Lula, Chirac, ônibus incendiado em Marseille, analfabetismo, esperança, futebol, Zidane, brasilidades, francesismos. O chefe da turma pede o email da cidadã. Quer seguir trocando idéias com ela – não é todo dia que aparece gente tão falante e sorridente por aqui. Logo, outra brasileira passa por lá: é Jussara, vinda de um vôo de Lisboa onde esteve com parentes que vivem em terras portuguesas. Antes, havia vivido dois meses na Alemanha fazendo um estágio em engenharia metalúrgica. Teve lá sua história de amor com o Björn, 29 anos, pouco mais velho que ela, também com seus olhos azuis do hemisfério norte. Jussara conta que, antes de partir, imprimiu várias fotos deles dois e as espalhou pela casa do rapaz. Björn ainda não encontrou todas; mas escreveu dizendo que cada uma delas lhe traz de volta um pedacinho de Jussara. Promessas, quereres. Ele disse que vai visitá-la no Brasil, mais especificamente em Ouro Preto onde a moça estuda. Ela não acredita (ou diz a si mesma que não acredita, já que suspira). Ei, Björn, apareça, por favor!!!


Terça-feira. O vento de ontem reaparece, desta vez no apartamento em São Paulo, que fica no quinto andar, e insiste em brincar com as cortinas. Ar, ar, ar. Deixe a luz entrar, menina! Se puder, abra também as portas, construa pontes, deixe crescer asas, plante bananeira e afofe a terra. Solte os cabelos, vista a saia de joaninhas. Viveu muita coisa para deixar criar mofo. As férias chegaram ao fim, mas o caminho não. Então... O vento que sopra aqui é exatamente o mesmo que soprava ontem em Túnis? Também é aquele mesmo que impeliu a viajante para o horizonte? Que emoldurou o pôr-do-sol no Castelo de San Ângelo naquela Roma rosada, que soprou a peregrina para as cintilantes ilhas croatas, que espalhou o canto da Mesquita de Selimiye para toda a Turquia numa noite de sábado estrelado, que empurrou o barquinho pelas águas do Sena no dia de “Antes do Pôr-do-Sol”?

“é chegar onde começamos
e conhecer o lugar pela primeira vez.” T.S.Eliot

Bem-vindos a mim, portanto – a mesma em essência, mas um tanto diferente depois da passagem do vento, que não pára de tirar do lugar meus papéis e meus sentimentos e embaraçar os meus cabelos.

“Agarrando-nos ao vento com as unhas”, disse Juan Rulfo, citado por Eduardo Galeano em seu Século do Vento. Já me agarrei.

31/10/2006