terça-feira, 11 de março de 2008

Crônica de um retorno anunciado



Madri. Faltavam mais ou menos quinze minutos para as nove da noite, e eu estava na linha azul claro em direção à estação Tribunal. Ainda teria de fazer outras duas baldeações, mas isso não era um problema. Chegaria ao aeroporto em cerca de trinta minutos, nem muito cedo nem muito tarde para o check-in. Na parada Sol, subiu um homem alto, branco de pele judiada, bigode grisalho, violão nos braços, microfone à Madonna.
Eu sentada, mochila grande nas costas, mochila pequena no peito.
Havia uma jovem meio gótica, outra de cabelos longos, um cinqüentão bonito, uma senhora ajeitadinha, um rapaz de olhar em dúvida e de moletom, uma oriental e seu bebê, um cara de feições indígenas latino-americanas, uma mulher elegante e seus óculos de armação superbacana, outras tantas pessoas.
O homem, então, começou a cantar – e cantava num italiano espanholado:

"Che sará, che sará, che sará, che sará della mia vita, chi lo sá? So far tutto o forse niente da domani si vedra, che sará..."

Eu me emocionei. Lágrimas no metrô, enquanto os outros olhos distraíam-se.
O que será?
Rio São Francisco em seu caminho ou Rio São Francisco transposto?
Meryem & Fernanda Ilimitada, livre e leve e solta sem CPMF, mas ainda tributada, rumo a...?


No vôo superlotado do avião imenso da Ibéria, paella para jantar, tinha ao meu lado Estela, paraguaia aos 37, três filhos e três anos de labuta em Madri. Duas irmãs na capital espanhola, uma delas casada com um nativo. Filhos e restante da família (inclusive "un marido que no sirve") em Ciudad del Este. Outra pessoa depois desse tempo de sacrifício em prol de uma vida melhor para todos, já que a situação socioeconômica do Paraguai está cada vez mais precária. Mas ninguém fala nada do país que ainda fala guarani; há petróleo ou gás natural por lá? Há Amazônia? Há Cordilheira dos Andes e zona de minérios? Há costa? Não, não há. Há pessoas apenas. Ah, então o mundo não se interessa. O mundo pouco se importa em saber como vivem Estela, seus filhos, sua família e seu marido que no sirve. Na América do Sul de poucos países, dos países loucos pero que todavía importan, há o meu país. E no meu país, que ainda importa aos países importantes do mundo, a situação também continua precária (já soube do absurdo que se passou no Pará).
Estela, enquanto aguardávamos por uma hora que comandante e torre decidissem levantar aquele avião do solo madrileño, falava em guarani com irmã pelo celular. Guarani soa bonito. Guarani é a língua ainda não colonizada. Dá-lhe, Paraguai, te respeito pra caramba. Eu me importo.

Do lado direito, mas com um corredor entre nós, estava Alexia, 8 anos de idade, longos e cheios e lindos cabelos louros e olhos azuis. Alexia tão brasileira quanto eu. Nos momentos em que a luz do avião seguia acesa, Alexia desenhava em seu caderninho e brincava com as cores de seus lápis de cor. Alexia desenhava rápido. Alexia me lembrou eu mesma, na década dos 10. No caderninho, em traços já seguros e com personalidade (essa menina, se seguir nesse caminho, vai ser um gênio), uma loura toma um café em Paris. A Torre Eiffel brilha em contraste com o céu azul. A chama acesa no monumento aos soldados mortos. Era para ser uma girafa, mas virou o rosto de uma mulher – "porque errei o contorno e não tinha borracha". Ficou genial, Alexia, os melhores desenhos surgem de situações assim. Árvores de Natal, uma ovelha. Alexia recria o mundo com os lápis de cor. E eu me reconecto comigo mesma naquele momento colorido. E digo ao irmão dela, que me mostrou o relógio de pulso comprado um dia antes: os desenhos da Alexia são os mais legais. O seu relógio é o mais legal. Mas o meu tênis... meu tênis é o mais legal. E ele concorda, Alexia concorda. Estela, quando vê, diz: "mira, niña, que ahora es tiempo de comprarte otro..."

Então desembarco com ambos sapatos furados, e dos dois lados, quatro furos que não se permitiram costurar e romperam todas as linhas de disfarce. Pés around the world. A calça jeans também rasgada, o cabelo espigado, a bochecha corada, o passaporte aberto na página da foto. A mulher da foto, de 2005, parece mais velha que a mulher que carrega as duas mochilas, o tênis mais legal do mundo, cinco quilos a mais – três adquiridos na viagem mexicana, dois graças ao humus palestino e aos doces turcos –, apenas duas mãos e o sentimento do mundo. O coração cheio do Amor.

O que será, o que será, o que será de minha vida, o que será?
Je suis arrivée, comme ça.
E, embora o sol no céu azul e os 28 graus que eu esperava não estavam à minha espera, havia pão de queijo. E tutu de feijão da mamãe que andou perdendo uns chumaços de cabelo e parte dos cílios por conta da quimioterapia, mas segue vendo – e vivendo – a vida com galhardia e coragem. E segue bonita que só. Como seguem bonitos o irmão e a tia e meu lírio da paz, que me esperava com as folhagens sempre exuberantes e quatro flores.

Bem-vindas, flores do lírio da paz.
A jornada está apenas começando.

Anuncio o retorno: volto para o mundo.

16/12/07

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