quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Mitrovica





Tem um brilho triste
Nos seus olhos azuis
Que enxergam cinza


― Mas eu quero as cores!


Tem solidão
Tem angústia


― Não quero ser sempre o lobo mau da história,
porque não sou o lobo mau.


Lobo -- o homem é
O lobo do homem,
Mas pode ser anjo.
Fada, xamã, amigo também.


Tem urânio na água,
Herança de uma estupidez
De grandes proporções.


Por quê?


― Por quê?


Ecoam as perguntas
Ao redor das montanhas
Que rodeiam o sítio, o sono, os sonhos
Como a circular dança dos patos
No rio sob a ponte,
a Ponte Borboleta.


Um beijo.


― Mas essa borboleta não voa.


Um policial turco toma conta dela,
Dois soldados franceses.


― Veja: um garoto de bicicleta vem do sul
para o norte.


Tão curto caminho
Entre dois pontos cardeais.

Lobo -- o homem quando quer
Vira mesmo o lobo do homem.


Metros, não sei quantos metros,
Mas a separação não alcança um quilômetro.


Borboleta que não voa é lagarta?


― Essa é a minha cidade,
O meu lar,
Minhas origens.


O azul triste
Está no céu também.
As cores?
As outras cores pintam
Artificialmente as fachadas do lado de lá
E também algumas de cá
Porque aqui os prédios
São escuros e tristes
E lá
E lá parece haver mais sorrisos
E lá a moeda é forte
Mas a felicidade não pode se comprar


― Borboleta.


Aqui a tristeza faz parte
Do ar e da água
Lá é disfarçada de conquista
Conquista de uma pseudoliberdade,
Acho eu.


-- Ponha isso no seu livro, então.


O idioma muda
Em tão poucos metros,
Mudam o estilo, a moeda, mudam as caras
- talvez mudem mesmo as caras –
Mudam os corações?
As lembranças, as dores, as digressões?


― Para entender a realidade aqui não bastam dois dias.
Uma semana, um mês.
É preciso um ano, dez, uma vida toda.
Como escrever um livro...


Vou escrever sobre você.


Olhos. Nos olhos.


― Não preciso perguntar, vou descobrindo aos pouquinhos.
Sua cor favorita é azul. Azul turquesa?


Quem são vocês,
Todos vocês, quem são?
Por quê?
Quantos porquês...
Tanta coisa para entender,
Eu aqui e você.


Meu frescor,
Sua solidão.
Confusos:
Eu para fora, você para dentro.


― Seus olhos.


Seus olhos.
Os nossos.


― Cruzou o oceano para chegar nessa merda de lugar?


Como vou entender o mundo sem vê-lo?

Sou míope
Preciso de óculos para enxergar de longe,
Assumo.

Refugiados, enclaves, ciganos,
Gente daqui, gente de lá
Quem é quem,
Qual é sua religião?


― Acendo uma vela para minha mãe numa igreja ortodoxa.
Todos os anos.
Há 21 anos.


E são tantos os monastérios,
Tantos deles profanados.
Destruídos, crucificados.
Mas também há mesquitas
– todas do lado de lá.
E muralhas invisíveis
E outras visíveis
Nos corações –
Artificiais essas muralhas,
Porque nunca nascem com a gente.


― Tenho amigos albaneses, you know.


Iknow it, but I don’t understand the distance.
Estratégias, dinheiros,
Cheiro de minas, de óleo.
Olfato assim importado
Da Europa Ocidental?
Made in USA?
Rússia ou Arábia Saudita?


― Sou sérvio e cruzo a ponte.


Sou brasileira
E quanto mais entendo
Menos sei, menos sei.


― Gosto da Albânia, país legal, e dos albanees.
Gente bacana.
Estive lá.


E nossas novelas...
Estão aqui, estão acolá,
Ensinando o português do Brasil.

― Meu sobrinho fala português.
Tem 17 anos.

Suspiro, sorrio, sorrio para você.
Você não sorri.

― Há nove anos me dedico ao trabalho humanitário.

Você não sorri.

― Estou cansado.


― Sabe do que tenho medo? Da segunda parte do jogo.


Catapum! Caem bombas!
Me lembro do tabuleiro “War”,
Inventado por não sei quem
Mapa-múndi,
Pecinhas coloridas,
Jogos de dados.
Desafio Sérvia,
Albânia aceita o desafio.
Seis e seis,
Seis e seis.
Quem ganha?
Estados Unidos.
Europa, talvez.


E saio brava, bufando,
Porque ainda não aprendi as injustiças,
Nem quero.


Quando reencontrei você,
Seus olhos continuavam tristes.
Bêbados de solidão e invariavelmente tristes.
“Sou um homem perigoso”, você me havia dito.
Perigoso por quê?


― Porque não me envolvo.


Adeus, Mitrovica.