segunda-feira, 26 de maio de 2008

A responsabilidade de ter olhos




Se puder olhar, olhe.
Olhe e veja.
Veja e enxergue.
Então, partilhe.
"A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam."
José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira

Tempo de libertação. Interior, antes de tudo.

Leio na internet que o dramaturgo e diretor teatral Gerald Thomas foi convidado a participar de um debate na UFRGS. O título da nota era: "Declarações de Gerald Thomas revoltam comunidade judaica".

Ih, pensei.
Em nosso mundinho ocidental-umbigal-pseudocosmopolita, a gente acha que os outros é que são extremistas: "Essa turma do Islã", por exemplo. Porém, os judeus podem ser tão radicais quanto. Assim como os cristãos -- de quaisquer grupos, dos integrantes da Opus Dei aos pentecostais fundamentalistas -- e denominações como Testemunhas de Jeová e mórmons. Imagino que haja linhas budistas, hindus ou afins que também se apegam, a despeito dos princípios mais simples das religiões, à tentação do poder e do saber (saber humano).
Porque, me desculpem, parece que as instituições religiosas têm esquecido Deus e seus livros sagrados para se dedicarem a jogos de domínio e controle.

Pois bem, voltando a Gerald Thomas. A nota conta que ele afirmou o seguinte: "Sou neto de pessoas que morreram no Holocausto e isso não me dá o direito de pisar em nada. Acho isso um horror, a indústria do Holocausto". E foi adiante: "Sou contra o Estado de Israel. Terra prometida por quem? Quando estive lá, a convite da revista “Caras”, sim, porque com meu dinheiro jamais iria, quis apertar a mão de Yasser Arafat."

Não vou defender Thomas. Creio que ele foi agressivo em seu modo de falar; no entanto, o conteúdo de sua declaração é verdadeiro. O holocausto do século 20 não dá direito algum aos judeus israelenses de recriarem um novo holocausto no século 21.
E é isso que, gradativamente, paulatinamente, silenciosamente, vem acontecendo aqui, em terras palestinas. Sim, terras palestinas: a antiga Cisjordânia, hoje território ocupado -- no sentido mais agressivo do termo -- por Israel. Os guetos já começaram, haja vista o muro construído pelos israelenses que não só rouba nacos de terra do que seria a Palestina segundo o Acordo de Oslo como frisa a separação e a discriminação.
(Guetos. (Ou: histórias que precisam ser reescritas...).

Gerald Thomas foi vaiado e, segundo a nota, os judeus presentes se retiraram do salão. Será que foram buscar informações sobre a ocupação israelense, se isso é verdade ou não, ou preferiram trancar-se no achismo da tal "terra prometida"?

Que religiões são essas que se acham distribuidoras de senhas para a participação do reino dos céus, da experiência da iluminação, do grupo dos escolhidos, dos detentores da terra prometida?

É tempo de repensarmos nossas posições e nossos radicalismos.
Tempo de parar com essa bobagem de nos acharmos os detentores da verdade, quando a Verdade -- com "V" maiúsculo -- está aí para todos. É tempo de nos reconectarmos com Deus e com os outros seres humanos. Religare.
Religare, gente.
Religare.

domingo, 25 de maio de 2008

*** Transfiguração ***



Ao pequeno Jihad, de 4 anos, com desejos
de que ele escape da sina de ser mais um mártir. Ou um prisioneiro.
E possa contemplar, absorto, o nascimento da imensidão.




Nem vazio,
nem deserto:
silêncio.



Um grande sertão.
Veredas de águas claras
encorajando
tantos corações esgazeados.
Ah, e como é bom.



O sepulcro vazio
escancara a vitória
abundante
que se quer próxima e íngreme
sem pódios
sem festejos fugazes
sem vazios.

com o silêncio.
Testemunhante.



Na quiescência plena da vida,
o moleque contempla
absorto
o nascimento da imensidão.
Reluz.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Humanidade, essa grande desconhecida





Ibrahim me diz: eu tenho esperança. Eu acredito na revolução. Bebemos cerveja num bar em Beit Jala, área de maioria cristã na grande Belém. Ibrahim é muçulmano, teoricamente não deve ingerir álcool, mas vez ou outra não resiste, ainda mais quando está entre os estrangeiros do Ibdaa Center. Acredito, ele me diz, que, quando alguém como você vem até aqui, uma pequena mudança já está em curso. Você voltará a seu país e contará a seus amigos o que viu, o que sentiu. E isso já fará diferença.



Ibrahim vive no Dheisheh Camp (fotos acima). Não somos donos de nossas casas, ele conta. Afinal, o dinheiro para o aluguel, água (quando não falta) e luz vem das Nações Unidas. Porém, sua família tem uma terra de origem, um vilarejo, hoje ocupado por Israel. E nessa terra de origem, sua família tem direito a um quinhão de chão. Mas eles não podem voltar: tal quinhão já não lhes pertence mais.




Breve momento de digressão. João Cabral de Melo Neto pede para circular entre meus pensamentos. "Essa cova em que estás,/ com palmos medida,/ é a conta menor/ que tiraste em vida./ É de bom tamanho,/ nem largo nem fundo,/ é a parte que te cabe/ deste latifúndio./ Não é cova grande,/ é cova medida,/ é a terra que querias/ ver dividida."


Nos parecemos mais do que imaginamos, é o que penso.

E como fazer a revolução?





O jovem Aysar confessa: quando mais novo, admirava os jovens que, keffiyeh enrolado no rosto deixando apenas os olhos à mostra, armas na mão, enfrentavam os soldados israelenses. Certo dia, topou com um deles numa das labirínticas ruas do campo. Gritou de emoção. Levou um peteleco: não berre, criança, os soldados vão ouvir e descobrir onde estou. Em outro momento, ainda miúdo de tudo, perdeu-se numa das ruelas do Dheisheh. Um soldado israelense acolheu-o nos braços e lhe perguntou qual era sua família. Levou o garotinho para sua casa. Aysar diz: não é por isso que vou gostar dos israelenses. Momento de silêncio. Aysar acende o cigarro -- como a maioria dos homens daqui, fuma um atrás do outro -- e olha pela janela.


Ele só conheceu seu pai quando tinha uns cinco anos de idade. Quando nasceu, o pai, membro da Frente Popular para a Libertação da Palestina, grupo político comunista, estava preso. "Quem é esse homem que vai dormir no seu quarto, mamãe?", perguntou na primeira noite em que viu o pai. Hoje, os conselhos paternos lhe parecem bem pertinentes: há outros caminhos para a revolução e para a paz.


Vários amigos de Aysar foram parar na prisão. Outros, assassinados. Ghassan, por exemplo, passou sete anos em diferentes presídios israelenses. Foi membro da FPLP e, além de agitador e líder, em sua acusação pesa o artigo "51A": ele tentou matar um soldado israelense. Admirado no campo, Ghassan já não acredita mais nos partidos políticos, hoje faria diferente, e partilha sua experiência -- e todos os seus aprendizados dos tempos da prisão -- com os jovens do Dheisheh.


Moyad é outro amigo de Aysar. Ele carrega uma bala instalada entre as vértebras, na região do coração. Durante a Segunda Intifada, jogava pedra nos israelenses. Um dia, foi a um dos check-points de Belém com os amigos. Atiraram pedras no jipe onde estavam três soldados. De repente, apareceu um quarto, arma em punho, e começaram os disparos. Moyad e um amigo foram atingidos. Meses depois, já recuperado, Moyad foi preso: alguém o denunciou aos israelenses.


Aysar diz que espiões palestinos são comuns. Em troca de garantias ou facilidades, eles mudam de lado e passam a dedar os conterrâneos. Aysar acende outro cigarro, conta a história de um professor que foi denunciado pelo próprio cunhado. Às vezes, esses "espiões" não têm escolha, ele fala, mas geralmente têm.


Que sabemos nós da humanidade quando não estamos conectados a nossa própria humanidade, perdidos em pensamentos mesquinhos e desejos superficiais e insaciáveis?
A alma sussurra a missão de cada um: semear, cultivar, colher ou distribuir. A todos nós, cabe partilhar. Semeanos na terra do outro? Cultivamos a semente alheia? Colhemos o fruto que não geramos? Distribuímos a colheita que encontramos? Partilhamos vida, a nossa, com o outro?
Perguntas que busco, com serenidade, curiosidade e espanto. Sim, amigos queridos usaram esse termo: "espanto". A capacidade de me espantar com o que há. O olhar da criança, do palhaço, do amante apaixonado.
No Caminho, com Maiakovski (pelo poeta Eduardo Alves da Costa):
Tu sabes,conheces melhor do que eua velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flordo nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores, matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Uma amiga se lembra da canção e partilha:
Drão
o amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
plantar nalgum lugar
Ressuscitar no chão
nossa semeadura
RESSUSCITAR NO CHÃO!!!

Yasser Arafat não morreu!


Um sósia do carismático e querido líder palestino, morto em 2004, deu uma canjinha nas celebrações relacionadas à Nakba ("Catástrofe"), que ocorreram no sábado 17, na escola mantida pela ONU no Campo de Refugiados Dheisheh, em Belém. Foi sucesso absoluto de público: tirou fotos, apertou mãos, distribuiu autógrafos e até discursou!

Também nesse mesmo sábado tive meu momento popstar. Logo depois dos shows de danças típicas, de uma esquete teatral sobre a ocupação israelense (o casal árabe, caricato, era hilário) e de apresentações musicais, antes de eu deixar o local para voltar ao Ibdaa Center, fui cercada por meninas e adolescentes palestinas. Elas me abraçavam, perguntavam meu nome, de onde eu vinha, quantos anos tinha, tocavam meu cabelo, elogiavam meus olhos, pediam para que eu dançasse, me convidavam para tomar chá. Somente vinte minutos mais tarde, consegui atravessar as poucas centenas de metros que me separavam do Ibdaa, atordoada, mas feliz! Ismee Maryam, fursa sa'ida!

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Um sonho chamado Jerusalém




















Khaled dirige o Ibdaa, centro educativo e cultural localizado numa das entradas do Campo de Refugiados Dheisheh, bem ao lado das instalações da ONU que oferecem atendimento médico à comunidade. Khaled também dirige o carro que nos leva a Ramallah, capital política dos territórios palestinos. Vamos assistir a um show de dança folclórica em memória dos 60 anos da Nakba (“a catástrofe”), quando os palestinos tiveram de deixar parte de seu território por conta da criação do Estado de Israel. Até o tempo mudou: o sol que queimava a pele e ressaltava ainda mais os tons areia da “pedra de Jerusalém” deu lugar a nuvens e vento gelado. Não há perspectiva de chuva: é primavera no Oriente Médio, quase verão. E a umidade que não veio no inverno passado certamente não virá agora. As famílias do campo Dheisheh sabem disso: tem faltado água com freqüência.

Khaled, então, me explica: teoricamente, seria fácil chegar a Ramallah saindo de Belém. Praticamente uma linha reta. Porém, no meio do caminho há Jerusalém. E Jerusalém, sob o controle israelense, está fechada a muitos palestinos, àqueles que não tem permissão ou a chamada “ID azul”, que dá direito a um entra-e-sai da cidade. Em todas as vias de e para Jerusalém, existem check-points. Assim, para alcançar Ramallah, temos de dar uma volta, passar perto de Jericó, a nordeste, e então retornar.

— Conheço Roma, conheço Paris, conheço várias cidades no mundo. Mas se você me perguntar como é Jerusalém hoje, não sei responder. Há quinze anos não vou lá. Não tenho permissão.

Tem um tanto de revolta na voz de Khaled, mas o tom carrega muito mais na nostalgia e na tristeza. O dia hoje esteve, na verdade, carregado de nostalgia e tristeza. Às duas da tarde, no outro campo de refugiados palestinos em Belém, o Aida, foram lançados ao céu balões negros em quantidade equivalente ao número de dias desde a criação do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948. Não havia revolta. Mas a nostalgia misturava-se com a tristeza nas músicas, nas danças, nos rostos das avós e nos suspiros dos jovens. Nos edifícios mais altos de Belém, foram projetadas fotos em PB sobre a sina do povo palestino. Bush, naquele momento, diante do parlamento israelense, falava em luta contra o terror. A possibilidade de que falte água, continue a faltar emprego, que mais terras sejam confiscadas e check-points sejam instalados causa terror nas gentes. Mas Bush não falava disso, acho eu.

Finalmente chegamos a Ramallah. Lembrei-me do poeta e escritor Mourid Barghouti em seu belo “Eu Vi Ramallah”, no qual relata seu retorno à terra que lhe pariu. Exílio é algo dolorido, dolorido. Ser privado da experiência de estar entre seu próprio povo dilacera qualquer coração. Ele diz: “Eu não vivo num lugar, vivo no tempo. Nos componentes de minha psique. Vivo numa sensibilidade só minha.”

Khaled sonha em voltar a ver Jerusalém, um dia.

domingo, 11 de maio de 2008

LIVRE!!!




Sou livre.
Heroína ou vilã porque quero.
Sou pobre?
Sou rica
Em emoções.
Sou poeta,
Não sou descrente.
Faço arte porque sou gente.

Imensidão de indivíduo



Petra, Petra, Petra: maravilha da Jordânia
2007 (MFV)


Me disse Barthes:
— A vida é assim,
feita a golpes de pequenas solidões.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Tempo de travessia

(por Pablo, 2004)



É tempo de travessia, eu sei. Travessia no sentido mais pessoal e mais Pessoa do termo. Mas não contenho as lágrimas. Olho para meu quarto bagunçado, para o meu cotidiano espalhado sobre a cama, o carpete, a mesa do computador. A estante em desordem, o armário quase ajeitado, meus espaços, meus tão reconhecidos e conhecidos espaços, e as lágrimas pedindo liberdade dos meus olhos. Queremos escorrer até a alma, me suplicam.
Fique, você poderia dizer. Você até diz. De um jeito ou de outro, escuto você falar. Mesmo que nem se dê conta. Eu também quero ficar. Mas igualmente quero ir.
Parece simples. Outros foram antes de mim: cursos longos de inglês, round-the-world trip em casal, turismo de bicicleta, amigo morando em Paris, amiga que acabou de voltar da Austrália, outra que ficou dois anos fora e eu a acompanhei ao aeroporto. Diante de todos eles, tanto você quanto eu tínhamos a certeza do retorno. Mas... e eu? Por que eu não tenho tal certeza?
O frio lá de fora parece um frio imenso e universal. Um frio que me coloca no aconchego do lar. Meu lar. Eu, você, nós, todos juntos. Mas meu bote está na margem e me espera, o bote que eu construí, no qual pus todo meu empenho e minha motivação. E agora tenho medo de subir nele. Tenho medo de me sentir só. De estar no meio da travessia, do rio, correntes, ventanias, e me sentir só. Sem você, sem ela, sem ele. Você sabe disso.
Do outro lado da margem, nenhuma expectativa. Como você atravessa um rio sem esperar nada? Não sei, mas assim ocorre. Sinto apenas que devo atravessar. Estarei à minha espera lá do outro lado. Não sei se caberei nas antigas roupas. Se o armário será ainda aquele meu armário. Se você será você, se nós nos reconheceremos de novo.
Mas há um rio. O rio tem duas margens. O rio leva ao mar.
Talvez nosso medo, o meu e o seu, seja o de que eu jamais retorne à primeira margem. Que eu me encante de tal forma que siga direto para o mar.
Anteontem machuquei o dedo, o polegar esquerdo. Fiz um corte. Saiu sangue. Pingou no chão, doeu. Carregarei a pequena cicatriz comigo. Pois então. A gente sabe que, se eu for, quando eu for, preciso ir inteira e levar meu coração. Você vai nele, é claro. Mas ele vai comigo, meu coração vai todo comigo. Por isso também choro, de saudade, de carinho, de não poder expressar meu afeto com meus braços. De olhar, desde o bote, e vê-los na margem primeira. De ter de fazer o périplo para voltar.
Por que você não fica?, uma última tentativa.
Porque, se eu não atravessar, jamais saberei quem sou de verdade! Mas, acredite, não é fácil. Não é fácil. Não quero ser só forte agora, quero ser corajosa. E permitir que venham todos os choros, todos os cansaços, todos os enjôos, todos os suores. Porque vão passar.


Você vai me acompanhar, não é?