Monumento às vítimas dos massacres durante a guerra civil em El Salvador
Parque de San Salvador, 2008
I.
Frente a frente, eu por perto, duas histórias.
Omar, filho de
militar e dona de casa, moradores da zona rural, seis irmãos, família
simples, tios e tias campesinos. Roberto, avós maternos donos de uma
grande fazenda no oriente do país, família de classe média. Uma guerra
civil a pleno vapor. Exército e esquadrões da morte formados por grupos
paramilitares decapitando “comunistas” pelo interior do país em nome da
ordem e do poder. Sangue de campesinos, estudantes, sindicalistas,
padres jesuítas e outros da Teologia da Libertação, advogados
pró-direitos humanos, professores, mães, pais, avós e crianças
misturando-se às sementes de um porvir incerto. “Los suscritos delegados
representantes de Unión Guerrera Blanca, Escuadrón de La Muerte,
Organización para La Liberación del Comunismo, Frente Anticomunista para
La Liberación de Centroamérica, La Mano Blanca, La Legión del Caribe y
Brigada Anticomunista Salvadoreña decretan: (…) exterminar físicamente a
todos los asesinos comunes, ladrones, asaltantes, violadores, rateros,
homosexuales, prostitutas, drogadictos, falsos curas, militares
traidores, abogados sinvergüenzas, profesores venenosos, funcionarios de
gobierno corruptos, prestamistas sin escrúpulos y toda esa podredumbre
de salvadoreños mal nacidos.” E assim foi. A guerrilha, formada por um
grupo de rebeldes de distintas ordens e lugares, informava o povo sobre
as condições de injustiça nas quais viviam desde a independência (e sob o
comando de uma oligarquia insaciável de poder) e também se defendia
atacando. Houve igualmente, porém em escala infinitamente menor, sangue
civil de prefeitos e fazendeiros partidários da direita corrupta e
cruel.
Omar, aos seis anos, viu seu pai ser torturado, dedos
quebrados, olhos furados, morto a balas e arrastado em um carro, acusado
de traidor. A mãe, testemunha, também foi assassinada. Perdeu quatro
tias e outros tantos familiares campesinos, todos violentamente mortos.
Os avós de Roberto, por sua vez, foram assassinados por um grupo de
guerrilha chamado ERP. Omar cresceu querendo vingança; a imagem não lhe
sai da cabeça. Roberto queria ser militar, defender a ordem, a família, a
terra. A vida ensinou a Omar que a justiça não é aliada da violência. A
vida, por sorte, lesionou Roberto e lhe tirou da carreira militar,
levou-o à UCA, universidade onde seis padres jesuítas haviam sido
brutalmente mortos por defenderem a liberdade de expressão. Roberto
descobriu que tudo o que lhe haviam contado em casa eram mentiras e que
os abusos militares tinham sido mil vezes mais bárbaros que os da
guerrilha. E que a guerrilha lutava por uma dignidade que o povo não
conhecia. Os acordos de paz já haviam sido firmados quando esses dois
homens se deram conta de sua condição. A dor não passa, porque as marcas
continuam vivas. Nunca houve punição a essa gente – e muitos dos
bárbaros seguem, senão no poder ou no governo, em postos estratégicos do
país. Falo de El Salvador.
II.
Poderia falar também da
Palestina, que vive sob o julgo da ocupação israelense. Muros ao redor
de suas cidades, check-points autoritários em que cada palestino, jovem
ou idoso, calmo ou nervoso, precisa provar que é gente a soldados
adolescentes orgulhosos das armas pesadas que portam. Palestina não é um
país, não é um Estado, quando muito lhe é permitido ser uma nação.
Território ocupado, vive um conflito interno: mais que Hamas ou Fatah ou
outra facção política, uma certa desilusão quanto às alternativas
suaves, pacíficas, demoradas e costuradas preguiçosamente pelas
organizações internacionais e os países dominantes. Desilusão que não
apaga a esperança, porém. Uma avó guarda a chave da casa que foi
obrigada a deixar. Um jovem de cílios longos sonha em chamar aquela
terra de país. Uma jovem mãe de três filhos espera que seu menino não
seja um homem-bomba. O cansaço, contudo, influencia os ânimos. Imaginem
que Israel não pára de construir assentamentos em pleno território
palestino. A legislação internacional permite isso? Respondam-me vocês.
E, para viver aí, não pensem que vão somente israelenses. Vão judeus de
todas as nacionalidades, inclusive indianos do norte, aqueles que têm
olhos amendoados e mais parecem nepaleses ou mongóis, acostumados a
climas cálidos e paisagens de outros tons.
— Conheço Roma, conheço
Paris, conheço várias cidades no mundo. Mas se você me perguntar como é
Jerusalém hoje, não sei responder. Há quinze anos não vou lá. Não tenho
permissão – conta-me Khaled, que dirige Ibdaa, centro educativo e
cultural localizado numa das entradas do Campo de Refugiados Dheisheh,
bem ao lado das instalações da ONU que oferecem atendimento médico à
comunidade.
Como viver com dignidade se todas as fontes de água e a
eletricidade são controladas por Israel a seu bel-prazer (e corta o
fornecimento quando quer)? Se esse povo é taxado de “terrorista”? Se
sofrem preconceito aonde quer que vão?
III.
Não mencionei
ainda a situação das mulheres na Índia, muitas delas obrigadas a uma
condição precária ou passiva diante de uma cultura deveras machista.
Quantas meninas vendidas a países árabes como empregadas domésticas ou
sexuais, quem saberá? Quantas mulheres vistas com desdém e comiseração
pelo simples fato de não serem casadas? Mas existem mulheres fortíssimas
por lá, cuja voz aos pouquinhos se faz ouvir. Porém, seguem a pobreza
generalizada, as péssimas condições sanitárias, epidemias de doenças
erradicadas há muito tempo em muitas nações. E a Índia faz parte do BRIC
e do G-20, economia jovem e vigorosa, quantos investimentos! Swagata
sempre dizendo: “não nos olhem com pena!” Jovem de voz forte, nascida em
Calcutá, cheia de sonhos e vontades. Swagata do país de Gandhi, que
também mobilizou o povo. A voz de Swagata faz eco à de Subba Rao,
pacifista de 75 anos com energia de sobra para falar às crianças: deixem
que venham a mim. Eles me enchem de ternura e esperança.
E
passeamos pelo norte do Chipre, esquecido pelo mundo que só tem olhos e
óculos Pierre Cardin (ou qualquer marca dessas) para o Chipre “que
presta”, o Chipre do euro, o Chipre rico e subordinado, seguidor das
cartilhas capitalistas e mercadológicas, de jovens de salto alto e rabo
de cavalo, shorts e blusas muito fashion, o Chipre grego. E no Chipre
norte, a terra pulverizada por sangue de ambos os lados, famílias
deslocadas, corações cheios de cicatrizes, lembranças de um tempo
sufocante, pobreza, quem sabe uma lembrança doce de um amor de verão. E a
Lefkoşa dividida e estranha: imigrantes pobres turcos vivem no centro
desértico e destruído, enquanto a classe média cipriota se acomoda nos
bairros mais afastados imaginando-se na Turquia. Ou na Europa. Ou em
ambas: na União Européia.
Massacres esquecidos e humilhações de
várias ordens também fazem parte do cotidiano e da história de sérvios,
bósnios, croatas, albaneses-kosovares. Cada qual com sua versão do fato,
com sua lembrança dolorida. Elejo Mitroviča como a cidade-símbolo dos
dissabores todos das guerras, dos mandos e desmandos dos homens de
gravata, de uniforme, de capacete azul e também de cifrões, esses
recheados de cifrões, olhos vidrados em minérios, petróleo, fontes de
água, corpos alheios. Elejo Mladen e Valdete, ele sérvio, ela albanesa,
como exemplos de dignidade em meio ao caos de egoísmos,
desentendimentos, surdez e violência. Ele cansadíssimo. Ela ainda cheia
de energia. Ele já desistiu de amar, muito difícil. Ela ensaia
tardiamente seus passos para o exercício da entrega. As cicatrizes doem,
embora eles disfarcem. Ele bebe, ela se agita.
IV.
Seguiríamos
falando, se houvesse tempo. Mas a urgência, nesse caso, é fundamental.
Há a África, a Ásia, a América Latina, também Europa e América do Norte,
Oceania, os oceanos. De um certo país imenso e gigantesco do hemisfério
sul, vêm as seguintes perguntas:
1. A quantas anda o julgamento do caso Eldorado dos Carajás?
2. E o caso Dorothy Stang?
3. E os culpados do massacre do Carandiru?
4. Candelária, Vigário Geral?
5.
E o caso da Raposa Serra do Sol? Do agricultor morto no Pará por
denunciar a ação nefasta das madeireiras livres leves e cínicas?
6. Haverá, de fato, justiça no caso do vôo da TAM que deixou 199 mortos?
E outras tantas mais que vocês saberão buscar.
V.
Em
10 de dezembro de 2008, a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
completa 60 anos de existência. Ao que parece, não há muito o que
comemorar.
Que seja, então, um dia para uma atitude pessoal
consciente e engajada diante da vida. Que bom se os nossos direitos são
ou foram respeitados até então. Por enquanto, me toca a liberdade de
expressão, sabe-se lá até quando. Mas nos sentimos bem borboleteando
enquanto milhares, milhões, quiçá bilhões de outros não têm a mesma
sorte que nós e seguem sendo violentados em seus direitos mais básicos?
A pensar, a sentir, a refletir, a partilhar, a agir.
São sessenta anos, sessenta anos... quanto mais esperaremos para fazer desse mundo um lugar digno para se viver?
Maria Fernanda Vomero