Tem um brilho triste
Nos seus olhos azuis
Que enxergam cinza
― Mas eu quero as cores!
Tem solidão
Tem angústia
― Não quero ser sempre o lobo mau da história,
porque não sou o lobo mau.
Lobo -- o homem é
O lobo do homem,
Mas pode ser anjo.
Fada, xamã, amigo também.
Tem urânio na água,
Herança de uma estupidez
De grandes proporções.
Por quê?
― Por quê?
Ecoam as perguntas
Ao redor das montanhas
Que rodeiam o sítio, o sono, os sonhos
Como a circular dança dos patos
No rio sob a ponte,
a Ponte Borboleta.
Um beijo.
― Mas essa borboleta não voa.
Um policial turco toma conta dela,
Dois soldados franceses.
― Veja: um garoto de bicicleta vem do sul
para o norte.
Tão curto caminho
Entre dois pontos cardeais.
Lobo -- o homem quando quer
Vira mesmo o lobo do homem.
Metros, não sei quantos metros,
Mas a separação não alcança um quilômetro.
Borboleta que não voa é lagarta?
― Essa é a minha cidade,
O meu lar,
Minhas origens.
O azul triste
Está no céu também.
As cores?
As outras cores pintam
Artificialmente as fachadas do lado de lá
E também algumas de cá
Porque aqui os prédios
São escuros e tristes
E lá
E lá parece haver mais sorrisos
E lá a moeda é forte
Mas a felicidade não pode se comprar
― Borboleta.
Aqui a tristeza faz parte
Do ar e da água
Lá é disfarçada de conquista
Conquista de uma pseudoliberdade,
Acho eu.
-- Ponha isso no seu livro, então.
O idioma muda
Em tão poucos metros,
Mudam o estilo, a moeda, mudam as caras
- talvez mudem mesmo as caras –
Mudam os corações?
As lembranças, as dores, as digressões?
― Para entender a realidade aqui não bastam dois dias.
Uma semana, um mês.
É preciso um ano, dez, uma vida toda.
Como escrever um livro...
Vou escrever sobre você.
Olhos. Nos olhos.
― Não preciso perguntar, vou descobrindo aos pouquinhos.
Sua cor favorita é azul. Azul turquesa?
Quem são vocês,
Todos vocês, quem são?
Por quê?
Quantos porquês...
Tanta coisa para entender,
Eu aqui e você.
Meu frescor,
Sua solidão.
Confusos:
Eu para fora, você para dentro.
― Seus olhos.
Seus olhos.
Os nossos.
― Cruzou o oceano para chegar nessa merda de lugar?
Como vou entender o mundo sem vê-lo?
Sou míope
Preciso de óculos para enxergar de longe,
Assumo.
Refugiados, enclaves, ciganos,
Gente daqui, gente de lá
Quem é quem,
Qual é sua religião?
― Acendo uma vela para minha mãe numa igreja ortodoxa.
Todos os anos.
Há 21 anos.
E são tantos os monastérios,
Tantos deles profanados.
Destruídos, crucificados.
Mas também há mesquitas
– todas do lado de lá.
E muralhas invisíveis
E outras visíveis
Nos corações –
Artificiais essas muralhas,
Porque nunca nascem com a gente.
― Tenho amigos albaneses, you know.
Iknow it, but I don’t understand the distance.
Estratégias, dinheiros,
Cheiro de minas, de óleo.
Olfato assim importado
Da Europa Ocidental?
Made in USA?
Rússia ou Arábia Saudita?
― Sou sérvio e cruzo a ponte.
Sou brasileira
E quanto mais entendo
Menos sei, menos sei.
― Gosto da Albânia, país legal, e dos albanees.
Gente bacana.
Estive lá.
E nossas novelas...
Estão aqui, estão acolá,
Ensinando o português do Brasil.
― Meu sobrinho fala português.
Tem 17 anos.
Suspiro, sorrio, sorrio para você.
Você não sorri.
― Há nove anos me dedico ao trabalho humanitário.
Você não sorri.
― Estou cansado.
― Sabe do que tenho medo? Da segunda parte do jogo.
Catapum! Caem bombas!
Me lembro do tabuleiro “War”,
Inventado por não sei quem
Mapa-múndi,
Pecinhas coloridas,
Jogos de dados.
Desafio Sérvia,
Albânia aceita o desafio.
Seis e seis,
Seis e seis.
Quem ganha?
Estados Unidos.
Europa, talvez.
E saio brava, bufando,
Porque ainda não aprendi as injustiças,
Nem quero.
Quando reencontrei você,
Seus olhos continuavam tristes.
Bêbados de solidão e invariavelmente tristes.
“Sou um homem perigoso”, você me havia dito.
Perigoso por quê?
― Porque não me envolvo.
Adeus, Mitrovica.