
As epifanias têm ainda espaço nos nossos violentos e cruéis dias?
Dias selvagens na Terra Sonâmbula, a bordo da nau Ilha Desconhecida. "Viajar! Perder países!/ Ser outro constantemente,/ Por a alma não ter raízes/ De viver de ver somente!/ Não pertencer nem a mim!"
Al querido C., gracías por la inspiración
El desayuno, un diálogo
entre pan y mantequilla
más que una palabra,
un deseo,
quizás una ciudad hija de unos cuantos países,
la semilla pide para existir:
-- ¡ay, que casi vuelo!
La mirada.
Hubo sonrisa, hubo risa
Día antes, manos juntas,
un rápido y distraído cariño:
-- enserio o bromeas?
"Te bautizo humana, mariposa, gaviota..."
Desde el pecho lleno de quereres
El corazón ferviente de ideas
-- ¡un suspiro!
y cantos venidos desde el útero hambriento
y de la boca rellena de amores
¡ Ah, eres fruto de tu tierra y de tu gente!
Entre vales y montañas,
cuantos pasos, cuantas alas
entra un rayo de luz
-- sea flujo, sea abstracción --
y se da la magia:
la concepción.
Tem um brilho triste
Nos seus olhos azuis
Que enxergam cinza
― Mas eu quero as cores!
Tem solidão
Tem angústia
― Não quero ser sempre o lobo mau da história,
porque não sou o lobo mau.
Lobo -- o homem é
O lobo do homem,
Mas pode ser anjo.
Fada, xamã, amigo também.
Tem urânio na água,
Herança de uma estupidez
De grandes proporções.
Por quê?
― Por quê?
Ecoam as perguntas
Ao redor das montanhas
Que rodeiam o sítio, o sono, os sonhos
Como a circular dança dos patos
No rio sob a ponte,
a Ponte Borboleta.
Um beijo.
― Mas essa borboleta não voa.
Um policial turco toma conta dela,
Dois soldados franceses.
― Veja: um garoto de bicicleta vem do sul
para o norte.
Tão curto caminho
Entre dois pontos cardeais.
Lobo -- o homem quando quer
Vira mesmo o lobo do homem.
Metros, não sei quantos metros,
Mas a separação não alcança um quilômetro.
Borboleta que não voa é lagarta?
― Essa é a minha cidade,
O meu lar,
Minhas origens.
O azul triste
Está no céu também.
As cores?
As outras cores pintam
Artificialmente as fachadas do lado de lá
E também algumas de cá
Porque aqui os prédios
São escuros e tristes
E lá
E lá parece haver mais sorrisos
E lá a moeda é forte
Mas a felicidade não pode se comprar
― Borboleta.
Aqui a tristeza faz parte
Do ar e da água
Lá é disfarçada de conquista
Conquista de uma pseudoliberdade,
Acho eu.
-- Ponha isso no seu livro, então.
O idioma muda
Em tão poucos metros,
Mudam o estilo, a moeda, mudam as caras
- talvez mudem mesmo as caras –
Mudam os corações?
As lembranças, as dores, as digressões?
― Para entender a realidade aqui não bastam dois dias.
Uma semana, um mês.
É preciso um ano, dez, uma vida toda.
Como escrever um livro...
Vou escrever sobre você.
Olhos. Nos olhos.
― Não preciso perguntar, vou descobrindo aos pouquinhos.
Sua cor favorita é azul. Azul turquesa?
Quem são vocês,
Todos vocês, quem são?
Por quê?
Quantos porquês...
Tanta coisa para entender,
Eu aqui e você.
Meu frescor,
Sua solidão.
Confusos:
Eu para fora, você para dentro.
― Seus olhos.
Seus olhos.
Os nossos.
― Cruzou o oceano para chegar nessa merda de lugar?
Como vou entender o mundo sem vê-lo?
Sou míope
Preciso de óculos para enxergar de longe,
Assumo.
Refugiados, enclaves, ciganos,
Gente daqui, gente de lá
Quem é quem,
Qual é sua religião?
― Acendo uma vela para minha mãe numa igreja ortodoxa.
Todos os anos.
Há 21 anos.
E são tantos os monastérios,
Tantos deles profanados.
Destruídos, crucificados.
Mas também há mesquitas
– todas do lado de lá.
E muralhas invisíveis
E outras visíveis
Nos corações –
Artificiais essas muralhas,
Porque nunca nascem com a gente.
― Tenho amigos albaneses, you know.
Iknow it, but I don’t understand the distance.
Estratégias, dinheiros,
Cheiro de minas, de óleo.
Olfato assim importado
Da Europa Ocidental?
Made in USA?
Rússia ou Arábia Saudita?
― Sou sérvio e cruzo a ponte.
Sou brasileira
E quanto mais entendo
Menos sei, menos sei.
― Gosto da Albânia, país legal, e dos albanees.
Gente bacana.
Estive lá.
E nossas novelas...
Estão aqui, estão acolá,
Ensinando o português do Brasil.
― Meu sobrinho fala português.
Tem 17 anos.
Suspiro, sorrio, sorrio para você.
Você não sorri.
― Há nove anos me dedico ao trabalho humanitário.
Você não sorri.
― Estou cansado.
― Sabe do que tenho medo? Da segunda parte do jogo.
Catapum! Caem bombas!
Me lembro do tabuleiro “War”,
Inventado por não sei quem
Mapa-múndi,
Pecinhas coloridas,
Jogos de dados.
Desafio Sérvia,
Albânia aceita o desafio.
Seis e seis,
Seis e seis.
Quem ganha?
Estados Unidos.
Europa, talvez.
E saio brava, bufando,
Porque ainda não aprendi as injustiças,
Nem quero.
Quando reencontrei você,
Seus olhos continuavam tristes.
Bêbados de solidão e invariavelmente tristes.
“Sou um homem perigoso”, você me havia dito.
Perigoso por quê?
― Porque não me envolvo.
Adeus, Mitrovica.
Joana, à esquerda, em sua última aparição
Cantamos -- e carregamos muitos outros conosco.
Havemos de amanhecer, poetas, havemos de amanhecer.
Por isso, continuemos a entoar nossos versos de alvorada não importa a vista alheia cansada ou nosso cansaço mesmo.
Obs.: Voltei pro Dheisheh Camp. Adoro esse lugar!!!
Segunda-feira. No princípio, eram o vento e as janelas. O vento que teimava em manter todas as janelas abertas e, vez ou outra, as sacudia com vontade. As janelas que iluminavam o apartamento e o coração e permitiam o entra-e-sai de sonhos e esperanças, de desejos e vontades, de planos e de medos, de intenções não-ditas. Depois, vieram o branco e o azul. Nas casinhas de La Goulette e em outras tantas da serena, franco-árabe e demodée Túnis, mas também naqueles olhos que me olhavam com suavidade e me reconheciam ternamente como outra pessoa, numa espécie de concretização das pequenas epifanias de Caio Fernando Abreu. Em seguida, chegaram a despedida, o aeroporto e o céu, cuja perspectiva transformou a simpática capital da Tunísia num mosaico à altura daqueles que o magnífico Museu do Bardo, com sua coleção da época bizantina, abriga. Seria pedir demais conter o choro. As lágrimas foram azuis, pois os olhos castanhos não conseguem mais apagar da retina os olhos azuis, as casinhas de telhado azul, o azul dos azulejos, o azulado da Medina, o azul do mar abaixo, a brancura de todo aquele azul.
Na quarta passagem pelo Charles de Gaulle, o moço da alfândega pergunta a origem da cicatriz no pescoço da moça, antes mesmo de pedir o passaporte. Em poucos minutos, todo o pessoal da segurança está conversando com a jeune fille brésilienne: Lula, Chirac, ônibus incendiado em Marseille, analfabetismo, esperança, futebol, Zidane, brasilidades, francesismos. O chefe da turma pede o email da cidadã. Quer seguir trocando idéias com ela – não é todo dia que aparece gente tão falante e sorridente por aqui. Logo, outra brasileira passa por lá: é Jussara, vinda de um vôo de Lisboa onde esteve com parentes que vivem em terras portuguesas. Antes, havia vivido dois meses na Alemanha fazendo um estágio em engenharia metalúrgica. Teve lá sua história de amor com o Björn, 29 anos, pouco mais velho que ela, também com seus olhos azuis do hemisfério norte. Jussara conta que, antes de partir, imprimiu várias fotos deles dois e as espalhou pela casa do rapaz. Björn ainda não encontrou todas; mas escreveu dizendo que cada uma delas lhe traz de volta um pedacinho de Jussara. Promessas, quereres. Ele disse que vai visitá-la no Brasil, mais especificamente em Ouro Preto onde a moça estuda. Ela não acredita (ou diz a si mesma que não acredita, já que suspira). Ei, Björn, apareça, por favor!!!
Terça-feira. O vento de ontem reaparece, desta vez no apartamento em São Paulo, que fica no quinto andar, e insiste em brincar com as cortinas. Ar, ar, ar. Deixe a luz entrar, menina! Se puder, abra também as portas, construa pontes, deixe crescer asas, plante bananeira e afofe a terra. Solte os cabelos, vista a saia de joaninhas. Viveu muita coisa para deixar criar mofo. As férias chegaram ao fim, mas o caminho não. Então... O vento que sopra aqui é exatamente o mesmo que soprava ontem em Túnis? Também é aquele mesmo que impeliu a viajante para o horizonte? Que emoldurou o pôr-do-sol no Castelo de San Ângelo naquela Roma rosada, que soprou a peregrina para as cintilantes ilhas croatas, que espalhou o canto da Mesquita de Selimiye para toda a Turquia numa noite de sábado estrelado, que empurrou o barquinho pelas águas do Sena no dia de “Antes do Pôr-do-Sol”?
“é chegar onde começamos
e conhecer o lugar pela primeira vez.” T.S.Eliot
Bem-vindos a mim, portanto – a mesma em essência, mas um tanto diferente depois da passagem do vento, que não pára de tirar do lugar meus papéis e meus sentimentos e embaraçar os meus cabelos.
“Agarrando-nos ao vento com as unhas”, disse Juan Rulfo, citado por Eduardo Galeano em seu Século do Vento. Já me agarrei.
31/10/2006